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quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Pausa para o Suicídio

Tenho me visto como uma coisinha errada, um rabisco que se faz por engano na pontinha não usada da folha de caderno. Sou um emaranhado de nós, quase como aquelas pinturas que dizem ser arte abstrata. Eu sou o abstratismo em pessoa! E acabei de inventar essa palavra, a propósito, o "abstratismo".

Tenho me sentido tão poderosa como dona de um blog que já me vejo no direito de criar novas palavras. Sim, quatro anos de blog e somente agora começo a sentir certo orgulho nisso. Não que seja lido, não que eu espere reconhecimento, não que eu conte as visitas. Só acho digno ter esse direito.

Tenho me visto como um rabisco errado. Algo feito de forma totalmente involuntária, que não se espera, não se planeja, não se pede. Algo que surge do meio do nada só pra fixar existência, ganhar um número de fabricação, produzir mão de obra, carregar algumas bagagens emocionais e dar o fora. Tipo isso.

Tenho sido uma coisinha tão pequena que quase me sinto insignificante. Mas daí lembro que o Robert Pattison (sim, aquele lindo do Crepúsculo), disse num filme que um tal de Dalai Lama (algum desses budistas carecas com cara de papai noel) disse (to sendo muito repetitiva?) que não fará diferença nenhuma o que fizermos no mundo, mas é muito importante que façamos.

Sei lá, esse tipo de frase chega a me dar arrepios, chega a dar cambalhotas no meu estomago. Então, quando me sinto insignificante e pequena, lembro do tal do Dalai Lama. Lembro dos caras grandes que um dia foram pequenos. Lembro do Stephen Hawking na sua cadeira de rodas. Lembro da J.K. Rowlling viajando num trem londrino e vendo o Harry Potter. Lembro de Jesus. Viro religiosa, filósofa, exemplar. Até pensei em dar palestras esses dias. Ou seria "esses dias, até pensei em dar palestras"?

É isso, me sinto pequena de novo. To perdendo o jeito, não sirvo mais pra escrever. To me aposentando. Tchau aí galera, não sirvo mais. To velha. To pobre. Sei la, alguma coisa eu to. Fico falando frases de crepúsculo. Ontem me peguei vendo novela. Tenho aprendido a cozinhar. Aposentei minhas revoltas. Tchau aí, foi um prazer conhecer vocês. Não conversem com estranhos, sigam pela sombra. Olha, ta dando lagoa azul de novo.

Não é meio louco como o Stan Lee criou todos aqueles caras em roupas coloridas e frases de impacto? Ainda estou apaixonada pelo homem-aranha. Sério, um dia caso com aquele homem. Acho o máximo tudo isso de um grande poder trazer uma grande responsabilidade e tal. Queria ter nascido num gibi. Daí começo a me perguntar se será possível que os personagens tenham uma alma. Mas então, talvez, os atores tenham milhares de almas. E se o Tobey Maguire, no fundo, ainda tiver a alma de homem-aranha? Caso com ele. Sério.

Criar um personagem dever ser tipo ter um filho. Tipo ser Deus. Que pena que não vou descobrir, to me aposentando. Tchau aí, tudo de bom pra vocês, to caindo fora. Não dá mais, é muito pra mim. Essa coisa de ser escritora. Vai ver que é tudo um engano meu. Acho que nasci pra morrer que nem todo mundo. Não que Stephen Hawking não vá morrer, mas o cara nasceu pra mudar o mundo. Eu nasci pra que mesmo? Procriar? Desculpa aí Igreja, mas to fora.

Eu deveria ser bilionária que nem naquela música do Bruno Mars. Sim, por que agora eu escuto Bruno Mars. Quem liga pra droga da cultura de peso? To tentando fazer parte desse país de terceiro mundo, me deixem em paz. Desisto de ser escritora, deixa que a Lispector já fez melhor por mim. Deixa que as americanas com um ensino e oportunidades melhores já estão fazendo meu tão sonhado trabalho.

I wanna be a billionaire...

Tchau aí pra vocês, foi ótimo e tal, mas to me aposentando.

Claro que dessa vez não é uma crise, ta na cara que eu não presto mais. Eu sou um boizinho que nem todo mundo. Muu pra vocês. To feliz como gado. Sério mesmo, no problem. Adoro essa coisa de falar inglês e parecer minimamente com o lindo do Bruno Mars que eu nem acho lindo mas digo que é só pra poder me enturmar "cázamiga".

Tchau aí, amo vocês seus lindos ( não é que eu aprendo rápido a me enturmar??)


 

Comunicado Importante

Hoje pensei em escrever um livro. Nele teria uma personagem que eu não lembro muito bem, mas acho que era divertida. Uma garota engraçada, apaixonada por seu cachorro ruivo que também era desdentado. Não que a menina fosse desdentada, mas ela tinha uns dentes bem estranhos. Um cara certo e baixinho. Um cara errado e musculoso. Um gato gordo com problemas intestinais. E um quadro pintado à mão do Beatles que se perderia no meio da redenção enquanto a tal menina engraçada comia um acarajé e sorria de um modo deprimente para o cara errado. Londres, Nova York, Romênia e Porto Alegre são as cidades principais do enredo. Acho que o nome dela seria Dorothéia. Daí mudei depois pra Anna. Imaginei que alguém podia ter um super-poder inédito. Não faço ideia de qual era, decidi que seria segredo. E os caras, o certo e o errado, podiam ser gays. Nunca disse que eram certos ou errados pra ela. Eles eram tipo a complementação de um equilíbrio perfeito um com o outro. Algo profundo mesmo. A menina ruiva ou loira queria ser cantora. Ela cantava horas a fio no karaokê e tinha uma voz de fada quando estava calada. Sim, eu disse calada. Daí pensei que talvez ela pudesse conhecer algum vampiro sexy e romeno. Vi os dois andando de mãos dadas sob poças românticas de sangue em formato de corações. Ele se transformando num morcego e ela observando da janela enquanto ele voava em círculos em frente à lua cheia.

Desisti, seria crepúsculo demais.    

Pensei que pudesse ser erótico. Talvez o vampiro romeno e sexy pudesse ser, na verdade, apenas um personagem de um clube de strip local. Era vampiro só nas quintas à noite em uma boate de cunho duvidoso.

Desisti, seria bizarro demais.

Pensei que talvez ela também pudesse ser gay. E conhecesse uma menina linda e hetero. E o problema da vida dela fosse esse amor platônico eterno.

Mas daí desisti, por que uma história dessas não ia chamar a atenção de ninguém. E eu tenho uma confiança minúscula na minha capacidade de imaginação.

É.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

A moça do Camafeu

A moça do camafeu dava seus passos largos sob as pedras ardentes do cais. O joelho doía na ferida aberta que dilacerava sua carne sensível com o atrito que a prótese causava na pele. O suor derramava-se imponente por entre os vincos do sangue seco. Tinha dentro de si uma morte pela qual chorar, mas não se lembrava ao certo de qual defunto seria. A dor nas pernas a impedia de esquecer-se de sua condição limitadora: não podia caminhar demais. Caminhe pouco, era o que todo o resto dizia.

E tinha sido exatamente assim desde aquele dia quente de dezembro passado. Desde aquele acidente que levara um terço de sua perna pra fora do mundo. Não que devesse ser uma historia triste sobre perdas de membros, mas achei que talvez fizesse certa diferença na percepção alheia o adicionamento de mais detalhes explicativos. A moça do camafeu era jovem e apaixonada, não tinha tempo pra sentir dor nas pernas ou reclamar de feridas que se curam lentamente. Não tinha tempo para sofrer e, por isso, era inexperiente na arte da dor. Mas tinha certo conhecimento em matéria de perda.

Dentro de si, guardava sopros irreconhecíveis de uma vida que nunca teria. Queria ter pernas bonitas. Queria ter o cabelo longo e saber falar todas as línguas do mundo, exceto japonês: gostava de alimentar certos mistérios. Queria ter mil olhos, pra poder ler quinhentos livros ao mesmo tempo. Queria ser lendária, mitológica, imortal, vampira, professora, azul. Simples assim, ela queria ser azul.

A moça do camafeu dava seus passos largos sob as pedras ardentes do cais do porto. O guarda simpático lhe acenava um tchau. Ele sorria, seus olhos cansados. Talvez ele me reconheça, pensou ela, embora não tivesse a mínima fé nisso. Talvez ele saiba por que me sinto triste. Talvez possa me ajudar a encontrar o velório. E, de logo, achou-se uma tonta. Que diabos o guarda poderia saber da vida? Nada, nada. Era só um homem feliz, casado, com filhos. Talvez fosse pirata, talvez fosse gay. E se não tivesse filhos? Poderia ser infeliz. E se não tivesse mãos? Ou pernas?

Ela já não duvidava de nada. Aprendera a não confiar nos próprios olhos, esses fofoqueiros mentirosos e superficiais. Sempre nos enganando com suas imagens ao pé da letra. Olhos são os órgãos mais belos e mais burros que o ser humano carrega. São traiçoeiros e mentirosos, um perigo quando mal usados. Ela tinha aprendido a controlar os seus olhos e nunca acreditar no que eles diziam. Ela nunca mais seria passada pra trás, ah não mesmo.

A moça do camafeu doía, ela toda. Como uma ferida aberta ambulante sem cicatrizante algum pra ajudar na reposição do tecido morto. Ela morria lentamente e queria chorar, mas não sabia pelo quê. Fantasmas a cutucavam pelos lados, faziam cócegas em seu nariz, ventavam em suas têmporas. Sussurros a faziam ter calafrios. Apenas um casal jovem a fazia companhia e ela se sentiu total e ridicularmente sozinha, quase como uma intrusa. Ela era a figurante estúpida que se intrometera na tomada errada, na historia errada, na paisagem errada, no momento errado. Toda equivocada, deu seus passos doloridos pelas pedras quentes.

O pé queimava por dentro do tênis surrado, a pele arranhava em carne viva a cada passo, mas ela quase não sentia. Era como se, de tanto amor, tivesse também certo torpor. Já quase não sentia dor alguma, era tudo um grande incômodo do universo, algo com o qual se aprende a conviver, uma pedrinha no sapato que se caminha sem notar quando o costume se torna maior do que o incômodo.

A moça do camafeu estava perdida, louca, triste e de luto. De luto pelo quê? Não fazia ideia, mas sentia saudade. De tudo, de nada, do todo, talvez. Não fazia ideia. Corria sob o sol fervoroso de dezembro, procurando por certa lógica na insanidade. Procurando por certo lugar no vazio. Fazia desejos desconexos para o universo, um Deus que não conhecia.

O senhor de longe a observava com certa adoração: era uma jovem adorável aquela, pensava ele. O senhor de perto se divertia: era jovem e queria só dar alguns beijinhos na namorada sem ser incomodado, mas achava certa graça da moça que se despedaçava ao vento bem abaixo de seus olhos. Carregava com ela, por sob o colo, uma joia rara. Pedras azuis emolduravam o retrato de uma moça no século XVIII. O rapaz não fazia ideia de nada disso, mas achou certa graciosidade no modo como aquela velharia contrastava tão bem com a jovem espevitada.

A moça do camafeu olhava ao longe do Guaíba com olhos felizes e um sorriso triste. Ou talvez fossem olhos tristes e um sorriso feliz. Não saberia dizer, não a via. Estava absorto eu meu estudo de feições, minha busca por personagens. Ela, com certeza, daria uma ótima personagem, percebi eu. Com suas mechas azuis a flutuar por entre as chiquinhas castanhas. Era um descompasso, um anacronismo. Parecia saída de outra época, de outro mundo, de outra idade. O rosto juvenil carregava em si um olhar ancião. Um olhar de quem já morreu e já sabe como é morrer. De quem já perdeu um filho, talvez. De quem já amou e foi embora. De quem já viu a fome e ainda assim não tenha ideia de como é se estar faminto.

Então, como que lembrando-se de algo em meio aos seus desatinos longínquos, a moça do camafeu direcionou-se lentamente pela saída, com as cabeça baixa e o pote de sorvete colorido por entre os dedos melados. Não via seu rosto, mas me parecia de costas que estava satisfeita com algo, talvez com a tristeza. Parecia triste e, ainda assim, paradoxalmente feliz. Era o retrato da filha que a alegria e a morbidez tiveram.

A moça do camafeu sentia-se triste, mas não era esse o sentimento padrão de todo o ser-humano com o mínimo de autoconsciência? Sentia-se triste quase como se pudesse chorar. Quase como se pudesse sentir falta de algo que ainda não reconhecia como seu. E, paralelamente, sentia-se alegre. Totalmente feliz. Como os ventos anunciadores da chuva que viria em breve. Como um aviso cósmico sobre as bem aventuranças próximas. Como um contraste bonito para se iniciar um recomeço.

A moça do camafeu não sou eu. É o meu alter ego, tentando desenhar a si mesmo como um personagem decente. É o meu subconsciente escrevendo sobre seu consciente. Um quê de esquizofrenia aqui, um quê de narcisismo ali e estamos bem. Não me reconheço como moça no alto de meus x anos, mas gosto dela. A moça que observa a tristeza com certa alegria. Gosto dela. Essa saudade do que não conheço, do que nunca possuí. Tenho certa inveja de sua falta de razoabilidade. Tenho certo sentimento por nossas semelhanças.

A moça do camafeu foi embora, carregando consigo meus tormentos e minhas curiosidades. No íntimo, as lágrimas que não caíram, os sorrisos que não provoquei.

Amei-a.

Fui-a.

Descrevi-a.

E, como a boa amadora que sou, transformei-a em texto, só pra não ficar a assombrar-me pela memória.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Desabafo Indecente

Devo ter algum problema grave de fabricação gravada no íntimo dos íntimos de dentro das minhas partículas de átomos danificados nas milhões de zilhões de células que me fazem ser quem eu sou. Sério. Sem querer blasfemar, mas acho que Deus teve um grande descuido trágico enquanto me soprava por dentro do nariz de barro. Tenho certeza que alguma parte do meu risco rígido de memória RAM está muito danificado, tipo muito mesmo. Sabe? Como um cavalo de Tróia permanente ou algo assim. Como quando cai um fio de cabelo dentro da panela e a gente não sabe mais como tirar e só se da conta depois que ta comendo e encontra o dito fio dentro da boca. Tipo algo irreversível, intransigível, indissolúvel. Com uma consequência certeira no final do destino errado. Tipo comer um macarrão maravilhoso com um molho divino e ser incomodada pelo mesmo fio de cabelo logo quando o alimento estava sendo dissolvido com seu devido prazer.

Quer algo mais broxante do que fio de cabelo no meio da massa?

Acho que só cueca de bichinhos. Sério.

Não, não me refiro a minha miopia, ao meu estigmatismo ou aos meus dentes tortos. Tampouco reclamo dos meus dois pés esquerdos ou dos meus olhos separados. Tem também esse redemoinho esquisito no topo frontal da cabeça que aborta todas as minhas tentativas de uma franja perfeita. Ah, claro, tem também a minha alergia a ácaro e a minha bronquite aguda e a minha teimosia e falta de responsabilidade momentânea. Mas não, não é nada disso. Meu problema central vai além de qualquer defeito meramente ilustrativo, físico ou psicológico. E é tão, mas tão vergonhoso que eu nem sei ao certo sobre como devo escrever sobre isso. É um daqueles assuntos constrangedores, tipo quando a gente vê a nossa mãe de lingerie se achando a Madonna. Acreditem, eu já passei por isso. Tão constrangedor quanto deixar aquele estrangeiro bonitinho escorregar a mão pro lugar certo quando a porta está relativamente aberta no lugar errado e alguém presumidamente estúpido acaba vendo.

Senhoras e senhores, tirem as crianças da sala, pois a coisa agora vai ficar feia. Preparem seus corações, respirem fundo, deem as mãos, pensem em Jesus e torçam pra que eu encontre a luz divina depois dessa revelação, por que o que virá a seguir será chocante, terrível, estrondoso, constragedorreríssimo: Eu sou um buraco sem fundo. É, tipo um daqueles funis que se usa na cozinha pra coar as coisas sabe? Bem assim. Eu sou insaciável, insatisfeita, horrorosa. Tipo uma fome que nunca se acaba, uma preguiça que nunca se finda, um beijo que se prolonga. Tipo algo incomum. Tipo anormal. É isso. Eu sou tipo um funil, uma pessoa anormal. Não tem chegada, não tem fundo, não tem chão, não tem gravidade. Não tem porra nenhuma na verdade. E, do fundo do coração, não queria mesmo que a ultima frase rimasse.

Já tentei falar isso pro meu psicanalista e ele disse que o ser humano nunca está satisfeito e isso é normal. E vamos combinar que essa é a porcaria de frase mais clichê e estúpida de todos os tempos. Quer dizer, se eu matasse alguém o cara simplesmente poderia então dizer que a minha violência é normal por que é coisa do ser humano ter um pouco de filha putice dentro de si, certo?

Daí eu contei pra minha melhor amiga. Por que é isso que uma mulher estressada e louca de desejos insanos faz quando não sabe quem mais poderia entendê-la se não aquela outra mulher estressada e cheia de desejos insanos que deveria ser a sua irmã: ela conta tudinho e espera ser entendida, ou, no mínimo, reconfortada. Vã ilusão. Minha melhor amiga é tão macho e tão mais problemática e tão mais prática do que eu, que me bateu forte no ombro e disse "Deixa de ser mulherzinha".

Então eu, já desesperada, tentei contar pra minha mãe, por que, no final das contas, só quem passou oito horas num trabalho de parto horrível pra abrir a vagina em mil vezes maior do que o tamanho normal pra te deixar entrar nessa bosta de mundo deveria saber o melhor a dizer numa hora dessas. Que tolice a minha! Ela fez biscoitos, passou a mão no meu cabelo e perguntou, com um sorriso ansioso, se eu achava que aquele novo corte de cabelo horrível estava parecido com o da Katy Perry. E o que eu fiz? Eu disse que sim. Não é como se eu pudesse falar que minha mãe parecia mais com uma união bizarra entre uma daquelas galinhas de briga que se põe nos ringues ilegais e ficam com a crista toda fudida e a tentativa falida da Miley Cyrus em parecer minimamente mais malvada com aquele cabelinho curto e descolorido do que com a eterna Hanna Maconha.

Montanha.

Montana.

Tanto faz.

A gente simplesmente não pode dizer uma coisa dessas. É tipo quebrar um dos protocolos principais estabelecidos na história da paz mundial na relação de mães e filhas. E como eu sou uma mulher muito digna, fiel aos protocolos de mães e filhas e extremamente compreensiva com essa paixão feminina em estragar o cabelo pra tentar disfarçar a solidão, menti.

A questão é que ninguém, ninguém mesmo me ouviu. Tentei até falar com as paredes como diz aquela música cafona. Mas eu tô pouco ligando se elas me ouviram. Por que paredes não nos abraçam ou dizem que somos mais bonitas do que a tal da Megan Fox como somente um bom amigo gay faria. Não. Elas ficam ali, perdidas nos seus tons pastéis, como se não tivéssemos dito nada. Que ganho eu posso ter em falar com paredes quando elas não me respondem? Então nem mesmo a parede pôde saber quais são meus desejos insanos.

Daí eu lembrei de algo crucial nessa minha vida: o meu netbook. Que instrumento mais maravilhoso! Claro, claro. Eu tenho um blog! O lugar mais maravilhoso do mundo, do planeta, do continente, do universo, da galáxia, da existência estrelar dos jedis da sessão interplanetária inimaginável. Simples assim. O meu blog é o lugar mais foda de se falar com alguém. So, here am i (então, aqui estou eu). Bilíngue e tudo. Mas só por que eu amo vocês. E só por que ninguém mais vai me entender.

Sou uma louca insaciável. Até aí tudo bem, acho que vocês já entenderam. Mas e como funciona quando a gente quer mais de um? Sabe... Mais de um. Tipo quando tu tem um carro e quer ter outro. Não que teu carro não te faça feliz. Não que teu carro não te satisfaça. Não que teu carro não seja grande e veloz e potente e másculo e tenha mãos fortes, digo, rodas. Rodas fortes. Mas é que daí te dá uma pontinha de vontade de voltar a experimentar o carro velho, só pra dar uma voltinha fora do comum. Só pra ver se continua bom. Carros. Sim, eu sou uma maníaca, louca, compulsiva por carros. E a questão é que vivo morrendo de vontade de experimentar outros carros. Claro que eu tenho um carro bem potente na garagem, mas não pode ter mais outros não?

Livros. Amo livros. Amo, amo, amo. Todos eles, amo todos. Eu poderia citar dezenas e dezenas com a frase "esse é meu preferido" do lado e iria ser verdade. Por que não pode ser assim com carros? Eu quero carros. Mulheres, vocês sabem do que eu estou falando. Carros. Sabe? Outras marchas, outros pedais, outros assentos. Uma nova maciez, um ronco de motor diferente, um cheiro de climatizador diferente. Um com ar condicionado, outro com janelas grandes, outro com quatro portas, outro só com os bancos da frente. Caminhonetes, derivações, cores diferentes. É muito bizarro? Loiro, moreno, ruivo. Amarelo, preto, vermelho, azul. Quero carros. Mas ninguém compreende. Ninguém consegue. É muito bizarro? É muito promíscuo querer experimentar outras texturas, outras visões, outras peles? Queria ser mais de uma, pra andar em vários carros ao mesmo tempo.

Por quando eu estou dentro de um, penso em estar dentro de outro. E eu nem sei ao certo como explicar isso. É muito bizarro? Será que um dia ainda vou acabar como a minha mãe, com os cortes de cabelo e a adoração pela Madonna e tudo? Não que minha mãe seja uma tarada maluca por carros, mas essas coisas meio que chegam na gente junto com a genética. Mas e se minhas filhas forem assim também, então a culpada serei eu? Filhos. Como vou ter filhos com vários carros diferentes? Não fecha.

Carros e homens. Meu grande problema nessa vida. Minha ambição mais vergonhosa, promíscua, sombria e curiosa. Não que eu me ache a rainha das putas dos carros. Mas acho que no fundo, lá no meio desse montinho esquisito de carne que a gente tem nas entranhas, toda mulher é meio puta. Não tem essa de se nascer santa e virar anjo. Não gosto da palavra puta por que é meio violenta. Mas gosto da libertação que ela trás. Ser puta é questão de respeito na Farrapos noturna. E se tu não sabe o que é farrapos, vem pra Porto Alegre que eu te explico, por que é uma das ruas que exala desespero, sexo e libertação feminina.

E carros dos piores tipos.

Por que somente carros baratos apreciam boas putas farrapianas.

Putas que tem todos os carros que querem e os que não querem também por que são putas e sabem disso. Ser puta é uma condenação promíscua que liberta a puta interior da puta puritana. A mulherada do mundo tá infestada por essa nova raça, as putas puritanas. As mulheres fortes e independentes que se divertem com os próprios dedos por uma falta de coragem absurda em se aceitarem como putas. E não digo isso como uma ofensa, mas sim como algo digno, uma característica comum no sexo feminino. O putismo. Libertem-se mulheres, libertem as putas que há em vocês. Sem puritanismos ou hipocrisias ou classe ou beijinhos ensaiados. Sem lençóis manchados do próprio batom. Chega de ser auto-suficiente. Sejamos putas. Sejamos verdadeiras. Sejamos mulheres de fibra com algo a oferecer pra esse mundo.

Putas sem vergonhas e corajosas do universo: Uni-vos!

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Classificados

Porto Alegre, 27 de novembro de 2012,

Olá, meu nome é Marciana Solitária e estou em busca de um marciano (ou terráqueo, rs) que me compreenda. Abaixo, meu texto auto-explicativo.

Precisa-se de amor:

Amor daqueles bem forte, bem quente, bem destruidor, bem arrasa coração. Daqueles que vai me virar de pernas pro ar e depois me fazer morrer de tristeza. Quero algo quente mesmo, algo que pegue fogo. Abraços que queimem, olhares que ardam, beijos que incendeiem. Quero fogos de artifício, fogueiras noturnas, queimaduras de milionésimo grau.

Preciso de abraços, presenças, beijos, discussões. Tudo isso com a pessoa certa. Com o cara lindo de olhos azuis e cabelo bagunçado que vai me sorrir daquele jeito e provocar sensações diversas bem na boca do meu estomago. Que vai ser como um chute atrás do outro no meu cérebro, nas minhas convicções. Que vai ser como ir pra lua e voltar sem um foguete ou mascara de oxigênio.

Eu quero um "Sandy" que me extrapole as expectativas, que me destrua a serenidade. Quero mãos frias que completem meu corpo quente. Quero uma tempestade extra tropical que abale as estruturas dos meus tijolos duros, que me derrube com tudo em cima dessa pilha de planos irrealizáveis. Quero mordidas doloridas, sussurros sonolentos, ombros fortes. Quero pelinhos eriçados, lábios inchados, roupas fora do lugar, sofá desarrumado, cama quebrada, paredes rachadas.

Preciso inventar desculpas esfarrapadas pra quem entendeu mal o barulho estrondoso dentro do quarto. De alguém que me limpe o canto da boca e diga que ninguém vai ver. De um olhar que me derrube as paredes a baixo. É necessário que haja paixão. Sem paixão eu descarto o amor. Quem se apaga por sopro é vela e eu não acho que eu me encaixe muito bem nesse quesito. É necessário que seja grande, potente, másculo e invencível. Um vendaval suficiente para apagar o incêndio do continente africano. Um furacão que leve toda a minha sanidade embora e sacie essa coisa estrondosa que me escapa pelos poros sedentos.

Quero mais, mais, mais, mais. Algo que não se finde com qualquer pedrinha atirada em conflitos apaixonados. Algo que não se quebre como vidro. Algo que permaneça imóvel como as rochas do monte Sinai. Quero mais, mais. Quero que cresça, que volte, que brigue, que grite, que chore, que murmure, que ame. Quero que me pegue pelos braços e diga que me odeia. Quero que se arrependa depois e me desconte de outra maneira. Quero mais. Quero um pulso forte, um bíceps largo, uma barba por fazer. Alguém que fale grosso, que chore fraco. Que seja doce e também salgado.

Não precisa ter olhos azuis não. Pensando bem, pode ser castanhos. Amo olhos castanhos. Desde que não sejam superficiais. Sem olhares de gelo ou vidro ou aço. Quero algo que se derreta, que me derreta. Não precisa ter um carro. Eu posso pensar em muitas maneiras divertidas de se usar uma bicicleta. Não precisa ser moreno. Tá, precisa sim. E um pouco alto, por favor. Não quero um cara que seja mais baixo que eu e me faça sentir como o ciclope do olho só. Ah e tem que gostar de mim, mas esse é um assunto mais complexo.

Gosto de animais, cores, livros, ventos e destruições apocalípticas de paixão.

Se você estiver interessado, telefone para 0xx(51) 9593-8598

Beijos alienígenas.


 


 


 

TPM e Você

Tensão pré-menstrual me faz lembrar você. Essa atmosfera de se livrar do sangue inútil, essa coisa de estar com as emoções viradas de ponta cabeça, essa dor no fundo do ventre, esse desejo carnal exagerado à flor da pele... Não sei, mas tudo isso me lembra muitíssimo você. Então eu sinto vontade de chorar lágrimas de prata colorida. Sinto vontade de pegar na sua mão, te puxar pra um abraço de urso, te fazer carinho, te dizer que te amo. Sinto vontade de bater na sua cara e implorar pra que você volte. Implorar pra que você implore que eu volte. Implorar para que a gente nunca volte.

Sinto dores que me escapam aos sentidos, que me questionam as certezas, que me deixam caidinha de amores. E eu me despedaço e, de repente, sinto como se fosse uma estrela cadente, brilhando sozinha no céu azulado. Você me olha de longe e não sabe. Eu te amo sem saber e não vejo. Mas que dor terrível, que idiotice. Meus hormônios estão no ponto de ebulição, eclodindo, chocando, destruindo o equilíbrio que ainda mantinha intacta a minha razão. E você não faz a mínima ideia que eu morri mil mortes por você desde ontem. Você não faz a mínima ideia de como é a sensação de se morrer mil mortes e, talvez por isso, ignore o meu velório exagerado. Você nunca soube interpretar minhas metáforas, não vai saber ler mais uma.

E você é burro. O burro mais lindo que eu já vi. E a data do seu aniversário é a senha do meu cartão de crédito, do meu facebook, do meu twitter, do meu login em um site alternativo de escritores. A cor dos seus olhos é a minha cor preferida entre todas as cores do arco-íris exatamente por eu nunca ter visto ela lá. A música que tocava na minha cabeça quando eu percebi que te amava é a mais tocada do meu Windows media player, por que eu não consigo simplesmente apagar. O número do seu celular dá as combinações exatas das minhas apostas na mega-sena e, acredite em mim, um dia elas ainda vão me transformar na milionária mais sortuda do país. Mas você é burro, e por isso não faz a mínima ideia de todas essas coisas. E eu preciso de uma boa TPM pra me lembrar de você. Não que eu não lembre nos outros dias, mas é que você tem algo em comum com ela: Me da dor de cabeça, náuseas, irritação e dores por todo o corpo.

É como se eu tivesse sido espancada pelo Anderson Silva e depois atropelada por um helicóptero tentando pousar e logo em seguida pisoteada por uma manada de búfalos. É irritante por que é algo que eu não posso evitar, foge do meu controle, da minhas mãos que imploram por algum reconhecimento de poder. Não tenho poder nenhum sobre as minhas dores, sobre o meu corpo ou sobre as minhas lembranças e só sei apanhar da vida por causa disso. Mas, olhas que divertido, eu acabo lembrando de você. Das suas mãos me fazendo carinho por que eu choramingo sem parar. Da sua boca se movimentando devagar pra que eu não me irrite. Do seu cheiro impregnado nas minhas mãos que não param de roçar nas suas costas. Eu lembro de tudo, eu sinto tudo.

Mas você é burro.

E não faz a mínima ideia.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Perdida e Grandiosa

Ando em meio a essa multidão de rostos assustados e passos rápidos e me pergunto se essas pessoas sabem pelo que vivem. Às seis da tarde de um dia urbano conturbado, cheio de horários, trânsito, barulhos, intrigas, sujeiras, gorduras, manipulações e amores, estão eles. Esses três milhões de habitantes que geram mão-de-obra e carregam o futuro do país, o salário do poderio e as dores de se ser quem se é em cima dos ombros. Olheiras, vermelhidões, gripes, pobreza, mesquinhez. Fatos que entregam a sobrecarga, o transporte não suportado. E, pelo meio, andam os alienados, os protegidos. Lá estão eles. Lá estão os cegos: são eles, somos nós.

Às vezes acho mesmo que tudo faz parte de uma realidade virtual criada pra testar a inteligência superior de seres evoluídos e lindos como eu. Sim, por que eu, segundo o meu ego, sou linda e inteligente demais quando comparada à essa gentinha de merda. Não pertenço a esse planeta, simples assim. Devo estar em algum tipo de reality show inter-planetário que testa a minha paciência, a minha resistência, as minhas habilidades em sobreviver no desconhecido e inabitável. E como é triste quando percebo que, no fundo, sou igual a todos eles. Sou detestável, suja, patética. Cheia de erros, imperfeita, sem nada de especial. Com vermelhidões, olheiras, pobreza, sujeiras, gorduras, intrigas e amores. Exatamente como todo o resto, resignada, enquanto sigo firme na minha posição privilegiada na fila do abate.

Não sei falar sobre o que não entendo e posso parecer maluca. Mas acho que sou maluca mesmo, já disse isso milhares de vezes. Não compreendo nada desse mundo, não faço ideia de como vim parar aqui. E se você vier me falar da união divina entre o espermatozoide vencedor com o útero sagrado, desista. Exatidões me são entediantes, certezas me dão sono, respostas não me suportam. Se preciso ser alimentada para me manter viva, então tenho algo pelo qual viver. Se me alimentam, minha existência estará limitada e daí é só partir para o final. Mantenham-me faminta. Não me deem cálculos ou certezas. Não me respondam. Não me preencham. A vontade de é a minha razão de viver. E, sem ela, eu morreria.

Você também quer entender, não é? Você também quer respostas. Más notícias: Estamos no mesmo barco. Cegos, sempre cegos. Fiéis, patéticos e cegos. Nem sei mais no que acredito, sabia? Não sei mesmo. Agradeço ao sol, ao ar, a Deus. Agradeço a algo que não compreendo em sua grandiosidade e me acho patética, boba mesmo. Acredito mais por costume e temor do que por fé de verdade. Não existe mais um homenzinho barbudo com seu caderninho de notas que me olha la de cima e diz como eu devo seguir em frente ou não. O conhecimento é uma maldição, uma condenação eterna. Aniquila a inocência que jamais deveria ter escapado dos meus olhos infantis, dos meus medos gigantescos, da minha sede de coisas puras. Sabe o que o conhecimento fez comigo? Tornou-me cética, chata, irritável, arrogante. Tornou-me sábia e imatura. O conhecimento acabou com a minha humildade. Acabou com o meu Deus. Acabou com o meu amor. Tudo que sobrou é essa casca dura e cheia de dores e friezas e conhecimentos inúteis.

Eu sei o que dizem por aí. Dizem que conhecimento liberta a gente dessa doença chamada ignorância. Um segredo? A ignorância é o passaporte para a liberdade. A liberdade de se ser o que se quer sem odiar a si mesmo por isso. A liberdade de se ser idiota sem perceber que se é, de fato, idiota. Simples assim. Liberdade de se ser ignorante sem nem ao menos se importar com isso. O idiota não se acha idiota por não saber que é. O infeliz não sabe que é infeliz por não conhecer a felicidade. É isso. Se você é feliz sendo ignorante, não procure conhecer. Vai acabar com seu sono, sua alegria, sua paz. Conhecimento trás dúvidas e angústias e medos terríveis. Ele alimenta nosso ego, aumenta nossa percepção egoísta. Meus problemas são maiores e mais pesados e mais tristes do que o do resto do mundo, assim como meus amores e minhas revoltas. Amo mais do que os outros jamais imaginaram ser possível amar. Odeio de uma maneira que ninguém mais poderia se quer pensar em um dia odiar. Sou única, incrível, inteligentíssima. Quero ver toda essa gentinha curvada, ajoelhada abaixo da minha grandiosidade.

Eu sou a dona do mundo e tenho todo o direito de escrever essa crítica a mim mesma, ao meu ego estúpido que se reconhece como idiota e, ainda assim, não o deixa de ser.

Dedico esse texto à minha estupidez egocêntrica e a você que me odeia.

Acredite ou não, às vezes eu também me odeio.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O texto que não é sobre você

Só dessa vez eu queria não escrever sobre você. Sei lá, tenho milhões de assuntos que poderiam ser bem mais interessantes do que a sua revolta disfarçada em passos rápidos. Bem mais interessantes do que o meu ódio disfarçado com surpresa. Mas é assim que acontece, você cruza a rua, dentre todas as milhões de ruas que existem nessa cidade, você simplesmente cruza aquela rua.

Sou uma pessoa que ama debates. Eu posso ficar aqui falando sobre alienígenas, apocalipse, economia, comunismo, direito, livros, música, educação e até de cozinha. O que as pessoas querem ler? Eu posso escrever sobre. Querem uma explicação subatômica fodona sobre a composição dos elementos que transformam o trigo em um bolo? Claro, posso improvisar. Querem críticas de cinema? Ta bom. Tô mega desatualizada, mas posso pesquisar. Eu posso falar sobre qualquer coisa, sério mesmo. Me garanto. Sou uma garantia andante, na verdade. Mas não, não. Eu posso falar sobre todos os assuntos do mundo e, ainda assim, continuo no mais desinteressante do planeta, das galáxias, das histórias por trás das histórias não românticas existentes.

Eu quero escrever sobre os seus braços finos, o seu cabelo desarrumado, o seus passos rápidos. Eu quero escrever sobre você cruzando a rua em frente a minha e puxando o meu tapete construído em cima de milhões de livros de auto-ajuda e cartazes colados na parede do meu quarto. Você me cruza a rua, me incomoda a vista, me tira o equilíbrio e continua indiferente. E eu odeio você. Odeio, odeio, odeio. E odeio. Eu odeio o seu cabelo que implora pelas minhas mãos, os seus passos rápidos que imploram pela minha atenção, as suas mãos pequenas que imploram pelo meu corpo faminto. Eu odeio essas sensação esquisita de querer gritar o seu nome e, ao mesmo tempo, fechar os olhos pra não ter que olhar você indo embora sem mim.

Eu odeio ter oito livros enormes em cima da cabeceira e, ainda assim, preferir ficar pensando em você. E lembrando dos seus braços finos, da sua boca grossa, dos seus passos rápidos. De todas as milhares de ruas dessa cidade, você tinha que atravessar logo a que eu estava. De todas as milhares de vidas desse planeta, você tinha que rodopiar e detonar e dar risada logo da minha. De todos os milhares de caras desse mundo, eu tinha que estar escrevendo agora logo sobre você. Eu te odeio, te odeio, te odeio. E dane-se se o amor e o ódio dividem o mesmo espaço, continuo odiando. Você e seus passos rápidos, sua indiferença contida, seu cabelo desarrumado. Você e a mania de viver se atravessando nas linhas tortas da minha vida, a mania de me fazer escrever em linhas retas uma história cheia de erros periféricos. A mania de me fazer disfarçar amor com ódio, loucura com solidão, saudade com raiva.

Mas hoje, só por hoje, o texto não é sobre você. É sobre o meu ódio contido contra os seus passos rápidos, a sua indiferença apaixonada, a sua saudade catatônica. Só por hoje, saiba que eu estou falando dos meus sentimentos atravessados, de um momento inesquecível, sobre como o meu tapete seguro foi puxado pelo cara descabelado do outro lado da rua que se parecia muito com você. E, pela milésima vez, por favor, deixe de ser presunçoso. Por que esse texto, meu amor, não é sobre você.

domingo, 4 de novembro de 2012

Você me pediu um cigarro – Fabrício Carpinejar




"Você foi covarde. Seu amor é forte, seu corpo é fraco. Você foi covarde como tantas vezes fui por acreditar que a coragem viria depois. A coragem não vem depois. A coragem vem antes ou não vem. Não posso amaldiçoar sua covardia. Sua boca não é rápida como suas pernas para me agarrar. Minhas pernas não são tão rápidas quanto minha boca para lhe impedir. Você foi covarde. Pela gentileza de sempre dizer sim, repetidos sim, quando não estava ouvindo. Já desfrutei de sua covardia, ríspido recusá-la agora porque não me favorece. Porque não fui escolhido. Não aquecerei seu prato para servi-la. Não a ajudarei no parto. Não partirei. Serei aquele que deveria ter sido, enterrado sem morrer, o que desapareceu permanecendo perto.

Sou seu constrangimento mais alegre. Sua ferida, seu feriado. Com o tempo, serei sua vontade de se calar. De se retirar da sala. Não conhecerá meus hábitos de puxar o café antes de ficar pronto. De abrir as venezianas como quem procura reunir os chinelos ao vento. Você foi covarde, ninguém iria compreendê-la. Hoje todos a compreendem, menos você mesma. Você não se compreende depois disso. O que é imenso é estreito. O que é infinito fecha. Até o oceano tem becos e ruas sem saída. Até o oceano. Sua esperança não diminui a covardia. Quer um conselho? Finge que a dor que sente é a minha para entreter sua dor. Saudades ficam violentas quando mudamos de endereço. Saudades ficam insuportáveis quando mudamos de sentido.


Você confunde sacrifício com covardia. Compreendo. Eu confundo amor com loucura. Cada um tem seus motivos, sua maneira de se convencer que fez o melhor, fez o que podia. Você me avisou que não tinha escolha. Nunca teria escolha. Você foi educada com a vida, pediu licença, agradeceu os presentes. Confiou que a vida logo a entenderia. E cederia. Engoliu uma palavra para dormir. Não serei vizinho de seu sobrenome. Seus nomes esperam um único nome que ficou para trás. Você não desencarnou, não se encarnou, deixou sua carne parada nas leituras. Morrer é continuar o que não foi vivido. Vai me continuar sem saber.

Você foi covarde. Com sua ternura pálida, seu medo de tudo, sua polidez em cumprir as promessas. Você não aprendeu a mentir. Tampouco aprendeu a dizer a verdade. O dia está escuro e não soprarei a luz ao seu lado. O dia está lento e não haverá movimento nas ruas. Você não revidou nenhuma das agressões, não revidará mais essa. Você foi covarde. A mais bela covardia de minha vida. A mais comovida. A mais sincera. A mais dolorida. O que me atormenta é que sou capaz de amar sua covardia. Foi o que restou de você em mim".

No cinzeiro, vários cigarros apagados...

Os cigarros amontoam-se uns sobre os outros no pires sujo de café. A cama de casal, desarrumada, guarda debaixo de si um par de alpargatas velhas e a Playboy do mês de outubro. Perto dela, o relógio caído marca sete horas. Frente à janela, na escrivaninha, pó, rascunhos escritos à mão, papel amassado, folhas em branco. Numa parede do quarto, afixados ao mural de isopor, a conta vencida do aluguel e o aviso de corte de luz. Na sala, a bolsa de couro e a mala preta (dentro dela tênis, blusão, calcinhas, jeans, camiseta, sutiã, camisa) dividem o espaço sobre o sofá com o casaco azul e a ultima VEJA.

Nesse momento, ouve-se um barulho na porta e Madalena invade o espaço silencioso e corrompe meu resguardo, meu rancor. O cabelo, outrora longo e volumoso, cai em fios bagunçados sob aquela tez enrugada. Sinto, de súbito, vergonha do meu desleixo involuntário, do comprimento da minha barba, da conta vencida que ameaçava o imóvel outrora nosso, da ultima veja jogada no chão que, a propósito, eu não lera. O contraste de nossos espíritos era latente, maçante, grotesco. A personalidade dela deixara de ser contida, a expressão deixara de ter o reflexo da educação polida. Por algum motivo que eu me negara, resignado, a enxergar, o mesmo monstro que me dilatara a vida, enaltecera a dela. Meu descuido parecia uma ofensa quando comparado à delicadeza daquelas faces rosadas, daquele olhar cintilante, daquele sorriso que me doía.

- Que tu quer aqui? – Disse eu, sem paciência para rodeios ou vergonhas infundadas.

- Vim para dar-te uma notícia importante. – Disse ela, cuidadosa, como pisasse em cacos de vidro. Numa voz determinada e ao mesmo tempo temerosa. Que notícia poderia ser aquela, para fazê-la vir até mim? Que será que o infeliz tinha feito para que ela se desse ao tamanho trabalho de desgrudar-se dele por um momento e vir ter com o ex-marido louco e maltrapilho?

- Mas, antes – Continuou ela, naquele tom cuidadoso, dando passos leves em direção à sala – preciso pegar minhas coisas. Onde estão elas, Martin?

Olhava em volta perdida, desnorteada, em meio ao caos que seu antigo lar havia se tornado. O vestido florido movia-se em volta daqueles joelhos macios e, em poucos segundos, meu apartamento já estava infectado pelo perfume dela. Aquele forte, doce frescor que irradiava da pele da adúltera.

- Está ali, do mesmo modo que você deixou. - Respondi secamente. Madalena sorriu para mim, esforçando-se para parecer simpática. Eu a conhecia bem demais para que ela sequer tentasse me enganar com aqueles sorrisos e floreios ensaiados. Se seu interesse fosse mesmo em buscar suas roupas, ela já o teria feito. O que quer que essa mulher tinha pra me dizer, a amedrontava de tal forma que, ao ver-me aqui em carne e osso, provavelmente desistira de seus planos, sejam lá quais fossem eles.

- Ah, aqui está! Exatamente no lugar onde deixei! – E, pegando a mala com facilidade, ela sentou-se no sofá, parecendo distante. Olhava para o cômodo empoeirado, para os tocos de cigarro que estavam escondidos por entre as almofadas do sofá. Eu permanecia estático na minha linha segura em frente à porta. Não sabia o que dizer para acabar com aquele silencio infernal, mas por sorte, ela o fez.

- Que te aconteceu Martin? Que tu tens?

Dei de ombros, cruzando os braços para tentar impor minha lucidez.

- Nada. Sou um homem completamente saudável.

- Onde estão os teus remédios?

Por um momento, tínhamos voltado no tempo. Há alguns meses atrás, quando ela ainda se dava ao luxo de contracenar sua preocupação por mim. Senti vontade de esganá-la. Com que direito ela me perguntava por remédios, por saúde? Com que direito invade a casa que agora é somente minha e senta-se sobre o sofá que agora é somente meu? Que a preocupação dela fosse para os infernos, junto com os remédios que eu mais tomava. E, para falar a verdade, jamais me sentira mais lúcido e dono de mim mesmo do que naquele espaço de tempo em que estive sozinho, sem ingerir um só comprimido.

- Que te importa sobre os meus remédios, Madalena? Coloquei-os no lixo. Todos eles. Já não preciso desses enganos científicos para viver.

Ela levantou-se, parecendo mesmo muito chocada. Colocou ambas as mãos em meu rosto, como que para examinar-me a saúde. Que criatura mais infame! Que mulher mais audaciosa! Não pude mais me conter. Numa explosão de fúria, segurei-lhe os pulsos com força, tomando o cuidado de não quebra-los com o meu rancor.

- Que tu quer de mim, mulher? Que tu quer aqui?

Aqueles olhos cristalinos desabavam em lágrimas que eu não compreendia. Como se a adúltera tivesse sentimentos! Era uma atriz, uma mentirosa, uma qualquer. Por que, afinal, ela chorava?

- Não podes abandonar os teus remédios Martin. Não podes, não podes...

Falava em sussurros frenéticos, como se estivesse fora de si. Temia toda, a mentirosa. Parecia uma ovelha assustada, um animal inocente. Mas, dessa vez, a loba não me enganaria. Eu estava farto do perfume, da voz, dos pulsos pequenos que tremiam em minhas mãos. Aquele pescoço frágil estava encharcado, brilhava pálido à luz fraca do apartamento. Se eu apertasse só um pouquinho poderia dar fim àquela angustia, aqueles meses de solidão que para ela nada significaram. Não, não. Segura-te, homem. Podes acabar preso por assassinato.

- Que foi mulher? Não entendo o que se passa, não compreendo. Por que veio ver-me? Por que choras tão desesperadamente?

Ela sorria em meio aos soluços. Era uma coisa curiosa de se ver. Um sorriso doentio, uma mulher perturbada.

- Oh Martin, meu doce Martin... Quero ter certeza de que estás lúcido para ouvir as boas novas.

Soltei-a, surpreso. O humor volátil deixara-me sem reação. Uma voz ao fundo da minha consciência dizia que aquele era o momento perfeito para mata-la.

- Estou, Madalena. Estou lúcido.

Ela pegou em minhas mãos, unindo meus dedos aos dela, com um sorriso radiante naquele rosto febril e úmido. Não pude me mover, senti que aquela informação seria crucial para o nosso destino.

- Martin, eu estou grávida.

Por um breve momento, o chão desabara. Grávida. Então a desgraçada havia feito a bondade de contar-me suas alegrias para com o outro? Que ela queria? Sapatinhos de bebê? Não me contive. Sem enxergar direito, tomado pela cólera e pelo instinto, a estapeei. Meu punho batera com força naquele rosto pequeno e ela recomeçara a chorar, pedindo que eu parasse. Não lhe dei ouvidos.

- Cala-te mentirosa! Monstro! Cala-te adúltera imunda. Eu hei de dar fim à tua existência agora mesmo.

Do nariz pequeno, sangue puro escorria. Ela cambaleava pela casa, dizendo mentiras, gritando meu nome. Eu não ouvia. Estava feliz, sentia-me pleno. Agarrei-lhe pelos cabelos e a joguei contra a parede do quarto.

- Martin, pare! Pare tu não entendes. Pare!

- Cala-te maldita!

Estrangulei-a com força e fervor. Ela morria lentamente nas minhas mãos. Os pés se debatiam no ar, os punhos pequenos batiam nas minhas costelas, as unhas arranhavam em vão. Até que, por fim, ela entregara-se à calma mórbida. O corpo sem vida caiu em meus braços e eu a envolvi em um abraço carinhoso. Madalena era bela, tanto viva quanto morta e eu jamais amara outra mulher que não ela. No seio inerte havia um papel reluzente que eu, durante minha fúria, não notara. Resignado, roubei-lhe o que, percebi um pouco mais tarde, era um bilhete.

" Querido Martin, se você estas a ler isso é por que a coragem fugiu-me do espírito e deixei-te por escrito o que, aparentemente, não pude falar: A razão mais recente da minha felicidade.

Entendas que, na minha posição, não cabe-me mais do que surpresa. Sei que não mais estamos juntos e que tu agora podes estar feliz sem mim, mas um acontecimento desses sempre deixa a gente meio fora de si.

Espero um filho, Martin.

Um filho que carrega nas veias o teu sangue! Um bebe que nosso amor, num passado recente, gerara. Oh, agora podes entender a minha covardia.

Bem sabes que sou medrosa, que sou inconstante e apaixonada. Às vezes até mesmo infantil. Mas serei mãe, Martin. Mãe do teu filho. Não mais estamos juntos, sei disso, mas não posso negar a origem da criatura maravilhosa que agora cresce em meu ventre.

Não mais o aborrecerei com reflexões românticas, sei que gostas de ser direto, portanto aqui me despeço. Sabes onde me encontrar, se assim o julgar necessário.

Sempre tua, Madalena".

Entreguei-me à convulsão repulsiva que aquelas palavras haviam me causado. A loucura estava intacta em meus sentimentos, bem como a consciência de minha monstruosidade. Nos meus braços, a mãe assassinada de um filho amado que jamais nasceria. O filho do homem que acabara de assassiná-lo.


 


 


 

O gato que tinha nome de rato

Eram lá meus dez ou onze anos. As fantasias da infância riam-se de mim quando eu, assustada pela chegada inesperada da adolescência, escolhera por enfeitar a casa com balões azuis e vermelhos. O tema da minha festa de aniversário era o "Homem-Aranha", já que sempre tive uma certa queda por gibis e homens de roupa colada.

Sob a mesa enfeitada, um bolo de dar água na boca trazia sobre si velas com a idade maldita. A prova de que o tempo estava passando e eu estava, gradativamente, transformando-me numa estranha para mim mesma. O cheiro de chocolate invadia a casa. Era uma festa humilde, só pra família. Na sala, ao lado da cozinha, ouvia-se os ruídos raivosos de futebol passando na televisão. Um Galvão Bueno descontente chingava os jogadores preguiçosos. Nas minhas mãos ansiosas, um gato se despreguiçava. Acredito que toda garota que se preze já teve um melhor amigo do sexo masculino. Ao menos eu tive. E o nome dele era Mickey, o gato com nome de rato.

Escondidos no meu quarto, nós ficávamos a esperar uma chamada para o jantar. Eu gostava de fingir surpresa. Ele, gostava de me acompanhar. A pelugem cinzenta que o cobria era densa e lembrava esfregão de aço. Os olhos esverdeados eram astutos, mas, naquela noite, pareciam preocupados. Mickey costumava ser um gato muito sutil, embora fosse também muito amoroso. E, na sua sutilidade, ele despedia-se de mim em silêncio.

Naquela noite, uma família se reunira feliz a cantar em nome da menina que fazia onze (ou dez) anos. O calor de novembro transformara a casa em um ambiente agradável, graças à brisa noturna. Eu estava feliz, mas, ao dar meia-noite, soube por intuição que algo havia mudado.

Mickey, o gato com nome de rato e coração de anjo, havia sumido.

Não sei se morreu, se fugiu, se foi roubado.

Mas o mistério do seu desaparecimento entristece-me até hoje.

A menina do colar de pérolas

Joaquim observava, boquiaberto, a forma como os dedos da menina fechavam-se sobre o colar de pérolas que envolvia seu minúsculo pescoço. Não deveria ter mais que cinco anos, pensava ele. Mas, pela expressão que via em seus olhos, poderia jurar que a sua percepção estava adiantada: Fulminava-o com a intensidade de uma mulher de trinta.

Vozes ressonaram, de forma grotesca, perturbando lhe a observação. Por um momento, Joaquim pensou estar parado comtemplando a criaturinha loura que o assassinava com os olhos, mas de súbito sentiu-se confuso. De alguma maneira, fora atropelado pela motocicleta dourada que o derrubara em cheio no asfalto escaldante. O homem negro e possante em cima da moto o observava com o canto dos olhos, como quem quebra um copo e o esconde em baixo do tapete, com medo que os outros vejam o estrago causado.

As pessoas se aglomeraram com ridícula rapidez ao redor do moço atropelado. Por sorte, Joaquim era forte feito o pai e valente feito a mãe. Uma união de qualidades que o faziam ser caloroso de espírito. Tinha um humor fácil, dócil. Havia saído para fazer a entrega do bolo que havia sido encomendado na padaria onde ele, de forma tão agradecida, trabalhava, quando se deparara com a menina que parecia anjo e o tirara do seu mundo. Era uma exceção às regras da sociedade, aquele rapaz português. Diziam as más línguas, que ele tinha delírios. Mas na verdade, não o compreendiam.

Afastou-se, finalmente, da confusão que o atropelamento havia causado. Ela ainda o observava, a menina. Ela tinha uma risada demoníaca e Joaquim, fosse por superstição tola e imatura, fosse por consequência da adrenalina recém sentida, soube o que ela era. E que Deus lhe protegesse a vida de agora em diante, por que ele estava encurralado, ameaçado, condenado. Condenado a que, ele se perguntava. Condenado ao pesadelo eterno que a menina do colar de pérolas o rogara. Se estava ficando louco ele não sabia, mas ficou feliz por ter uma crença na qual se agarrar.

O bolo, que por sorte ainda estava intacto após a queda abrupta, foi juntado por mãos delicadas de unhas cor-de-rosa. Emanuelle, a amada vizinha de Joaquim, tivera a bondade de junta-lo para o amigo, que a observava temeroso.

- Que tu tens? – Perguntara ela, preocupada.

Ele não queria parecer louco, mas precisava compartilhar seu infortúnio com alguém. Aproximou-se dela e respirou fundo, tomando coragem para contar-lhe sobre a bruxa, quando uma mãozinha gélida o tocara nos dedos. Era ela. Era a bruxa. Tomado de pavor, ele apenas observou, atônito, enquanto Emanuelle afagava os cabelos da criaturinha.

- Oh, Joaquim. Você não se lembra dela? É minha irmãzinha, Gabrielle.

E foi então que ele lembrou-se de Gabrielle. Claro, claro. O bebê louro que ele, por um terrível descuido, derrubara do berço quando ela tinha apenas um ano de idade. O bebe que voltara para assombrá-lo naquela noite de halloween.

E que Deus tivesse piedade dele.

sábado, 27 de outubro de 2012

Pac Man e outras coisas

Digo sempre que sei de tudo, mas é que a verdade não me é cabida. Minto sempre pra ver se acho certas certezas que de nada me servem. Escrevo em linhas tortas um destino tão seco quanto as folhas que caem, agora atrasadas, de um outono que já partiu. É que a verdade me assusta e, seja por medo ou covardia, continuo a mentir.

Presunção. Que palavra mais bonita. Será que sou presunçosa? Um pouco de orgulho ali, um ego crescidinho aqui. Longe de mim ter uma confiança exagerada nas minhas capacidades finitas, mas é que a verdade... Bem, a verdade não me é cabida.

Eu caminho no meio dessa multidão de gente conservadora e me sinto nua. Sempre pelada, com o meu nome escrito em vermelho na minha testa. O ser humano tem a grande dificuldade de entender que pode haver algo mais por trás de qualquer crença. O ser humano tá caindo. Deus olha lá de cima e deve ter vergonha. Mas nem mesmo Deus deve saber ao certo sobre o que pensar. Se Ele, mesmo tão inteligente, deu vida a essa raça miserável, que nos resta então? Não quero nem pensar sobre os filhos que não quero ter. Os pobres coitados serão gratos a mim quando perceberem que eu os estou privando de uma existência fadada ao fracasso.

É isso. Não me canso de ver erros nesses cantos redondos do planeta. Japoneses e mulçumanos são todos loucos e errados. Americanos e espanhóis também. Franceses são bonitos, mas vaidosos. Brasileiros são algo a ser estudado. Pessoas são cansativas. Animais são comestíveis. Arvores são descartáveis. O mundo é o cenário do pac man e eu sou o pac man, comendo tudo que eu vejo pela frente. Os fantasmas são os guerreiros da natureza, como raios, vulcões.

Meu humor hoje tá muito estranho. Então se vocês não entendem nada de mundo, de pessoas ou de pac man, ignorem esse texto.

Por que afinal, a verdade não me é cabida.

A Última Prosa

Eu vi o sol nascer ao seu lado, enquanto as minhas certezas migravam para o oriente junto com a escuridão. A respiração que saia do seu nariz era transformada em vapor e voava pra junto da minha. Uma união bonita de se ver, aquela que aconteceu com as nossas cotas de oxigênio. Mas você não percebia. Você olhava pra frente, encantado com o dia que amanhecia. E eu olhava pra você, encantada com o encantamento que você sentia. Amanhã eu te esqueço de novo, e a luta contra tudo isso recomeça. Sim eu também acho estranho, eu queria ter dito, mas enquanto o dia não amanhecer, me deixa te amar só mais um pouco. Enquanto me obrigo a esquecer que ainda te amo.

Foi a primeira vez em muito tempo que eu não lutei contra você. Deixei que meus sentimentos me levassem como o fluxo da maré, de uma forma serena e tranquila. Deixei de lado todos aqueles meses de conflitos internos e externos, todos aqueles anos de ódio que jurei. De repente, todas aquelas minhas manias de me prender no ressentimento se foram. Minhas promessas morriam de acordo com o meu amor que, na hora, ressurgia das cinzas. E eu o senti em todo o esplendor. Eu te senti com todo o seu esplendor. Eu deixei que você pegasse na minha mão e me desse certa segurança enquanto caminhávamos nos becos escuros de madrugada. Você, como antigamente, me fez esquecer de todos os motivos que eu defendia com tanto ardor pra me manter distante. Naquela noite, eu me apaixonei de novo, mesmo sem querer.

Honestamente, eu não sei o que vi nesses teus olhos fugidios ou nessa tua risada forçada. Eu não sei por que, depois de todo esse tempo, eu voltei logo pro único cara que eu prometi que nunca voltaria. Nunca vou entender por que vivo repetindo meus erros ou sentindo saudades que já não existem. E, de novo, você vira poesia. Mesmo que a nossa prosa já tenha terminado, você continua virando poesia. Você me olhou surpreso quando eu disse, pela milésima vez, que te amava. Você me segurou mais firme no braço quando eu, na minha tontura alcoolica, quase caí no meio da festa escura. Você me salvou de ser ridícula e me condenou a ser romântica, errônea, patética. Você, por todos esses meses, já é o morto-vivo do meu romance predileto. Você morre por três meses e levanta por dois dias. Eu te esqueço por seis meses e te amo por uma noite. E, ainda assim, continua virando poesia.

Você achou graça da minha saudade quando eu te implorei permanência fixa na minha vida. Você disse que ficaria e eu te beijei, por que vi sinceridade nesses olhos fugidios. Eu nunca vou entender, de verdade, por que te amo tanto. Nunca vou entender por que essas coisas acontecem na vida da gente. Por que você caiu como um raio abrupto na minha vida e me salvou enquanto fazia o papel de anjo. E eu amava achar que você era o meu anjo. E eu continuei amando, quando percebi que também era um dos meus demônios. Você foi o bálsamo e o veneno. Foi a vida e a morte. Foi o amor e o ódio. Você foi tudo, menos indiferença. Você é tudo e ao mesmo tempo é nada.

Eu vi o sol nascer ao seu lado. E você achou graça quando eu disse que no dia seguinte pareceria um sonho. Mas é que agora, parece. A verdade, é que eu não suportei essa coisa de fixar a sua presença. Não parecia certo. Eu escrevi um livro sobre você. Eu escrevi um capitulo inteiro sobre a sua petulância. E, naquela noite, eu escrevi um conto sobre o quanto eu te amava. Mas, hoje, você virou prosa, só pra não ser poesia. Por que prosas não tem rimas, nem enrolações, nem felicidade, nem filosofia, nem amor, nem nada. Prosa é o texto seco que o escritor exprime o epílogo de uma constatação. E você, mais do que um prólogo, agora também é um epílogo. Um epílogo sobre aquilo que eu pensei que seria e agora não é. Eu não suportei saber que você ficaria. Você me ofereceu permanência quando já não havia nada fixado. Não havia base, nem cimento, nem colas, nem sentimento, nem nada que nos unisse. Apenas um amor surrado e um livro grosso cheio de contos e poesias que eu escrevi sobre você. E, talvez, você seja minha obsessão. E nada disso é saudável. Demônio, obsessão, droga.

Mas você, e admito, eu também, nunca vamos entender ao certo o que aconteceu. Por que tinha tanto sentimento e tanto erro? Tanto amor e tanto ódio? Tanto perdão e tanta mágoa? Tanto abraço e tanta ofensa? Eu nunca vou entender. Mas não é preciso ser muito inteligente pra perceber que é autodestrutivo. Então, só dessa vez, pra ficar tudo justo, quem fechou o livro fui eu. Joguei toda essa papelada embaixo do tapete e saí correndo pra não ver a tragédia recomeçar. Eu achei que, talvez, você quisesse entender. Mas sei que não vai, por que eu também não entendo.

Eu amei você como um conto de amor do Mário Quintana. Todo fofo e cheio de borboletas. E agora esqueço esse amor com uma prosa ao estilo eu, todo cheio de erros e inexperiência. Mas, no final, foi assim que eu e você fomos felizes para sempre. Cada um para o seu lado.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

A visão

Sinto o planeta pulsando, como o coração incontrolável que bate penosamente. A libertação furiosa que origina o atrito de milhões de partículas, tão pequenas que chegam a ser invisíveis para esses meus olhos de humana. Humana, essa espécie estagnada, que me condena a uma vida de cegueira passiva. Considerar-me-iam doida, por alegar sentir, com a alma, coisas que não se pode ver? Sinto medo de enlouquecer sozinha. Medo de, em meio aos meus delírios, acabar sendo escrava de minhas próprias fantasias.

Eles não me escutam. Sei bem disso. Sei também, embora me doa, que me trairão se assim for necessário. São todos céticos e tolos, condenados à ilusão que sua cegueira projeta de forma tão segura e inquestionável. São cheios de certeza, esses homens da era da tecnológica. Possuem, creio eu, um DNA repleto de equações e fórmulas matemáticas. Não são mais homens, são máquinas feitas para repetir. Alguns possuem comandos diversos, outros se acreditam livres dentro da sua alienação doentia. São felizes, os coitados. Para mim não passam de robôs. Ovelhas que caminham cabisbaixas para o abate.

Minhas críticas de nada valem, sou apenas a coitada enrolada em uma camisa de força para não ferir os outros com minha agressividade patológica. Eles não me escutam, sei disso. E de novo direi: Todos vão morrer, antes mesmo de entrarem para dentro de um caixão. Sei disso. Todos esses deuses da modernidade irão para o Olimpo e destruirão suas próprias imagens. São loucos, todos eles. Loucos e mortos.

sábado, 6 de outubro de 2012

O convite

As gotas douradas caíam em cima do meu couro cabeludo, de um modo dolorido, forte, cruel. A percepção crua de verdades não percebidas estava sendo forçada pra dentro de mim, tomando conta da minha circulação sanguínea. Como não percebi isso antes? Eu teria lutado por você. Mas, certamente, nunca teria bastado.

O convite requintado e brilhante estava trêmulo e quente na minha mão, agora gelada. O choque percorria meu corpo, um monstro urrava por libertação dentro do meu estômago. O enjoo se propagava à medida que eu relia as palavras bonitas em sépia.

"Você está cordialmente instaurado a comparecer, no dia 27 de outubro de 2012 à celebração matrimonial de Magnus Muller e Elenita Rodriguez, etc...".

Não podia mais. Não conseguia. Meu café da manhã parecia gritar nas paredes da minha garganta, lutando por sair. Peguei alguns comprimidos do meu Dramin e engoli a seco, não me importando com o atrito incomodo que se instalava garganta a baixo. Aliás, nada mais fazia o mínimo sentido. Tudo bem, eu entendo que depois de um tempo do término de um relacionamento o rumo natural da coisa é procurar alguém pra nos fazer esquecer. Ah, eu bem sabia disso. O bom mesmo é sair, aproveitar a vida recheada de possibilidades. Ter relações fugazes e tão profundas quanto um pires. Tudo bem. Tudo bem mesmo, pois eu também fiz isso. Mas casar? Casar parecia demais. Demais pro que os meus nervos podiam suportar.

Aquele convite dourado representava o fim de um era, o apocalipse das minhas esperanças mais vergonhosas, o crepúsculo dos meus dias de profundo aguardo. Eu não estava chorando por ele. Não, não mesmo. Eu estava chorando, percebi, pela morte de uma parte de mim que ainda o amava. Não era apenas um convite, era uma arma letal, uma bala de chumbo perfurando cada centímetro de uma alma criada especialmente para espera-lo. Como isso tinha acontecido afinal? Se eu não tivesse ido embora, ele teria lutado por mim. Certo? Agora posso ver com clareza que nunca houve reciprocidade. Meu pretérito jamais se importara. E, se houve alguma espécie de reconhecimento, ele fez muito bem o papel de indiferente. Mas casar, meu amor? Casar? Não, isso não parecia certo. O que eu estava esperando, afinal? Que as coisas se resolvessem da noite pro dia, depois de cinco anos?

O relógio ainda estava retumbando num tiquetaquiar irritante, vindo da cozinha. Agora, a clareza se tornava mais nítida. Ele nunca lutara por mim. Sempre fora eu, a guerreira impassível. A que teria virado o mundo de cabeça pra baixo por ele. Mas e ele? Ele ia casar. Ele ia casar com alguma sonsa que não se importava nem metade do quanto eu tinha me importado. Com uma dessas aí que talvez nem o amasse. E não me venham com contradições, por que eu estou muito bem com todo o meu choque e raiva. Ela nunca vai amá-lo e pronto. Esse é o meu conforto. Ele não vai ser feliz, por que não serei eu. Simples. Entende? Ele não vai ser feliz. Grande casamento de merda, eu também sabia fazer convites dourados e alegres como aquele. Claro que eu sabia. E um dia ainda ia fazer e ia carregar o nome de algum cara incrível e maluco que me amasse como a sonsinha la nunca o amaria.

As imagens voavam soltas pelo meu quarto, agora parecendo absurdamente solitário. Lá estávamos nós, apaixonados. Vinte e tantos anos e muitos sonhos. Vinte e tantos anos e muitos hormônios. Era incrível e lindo e eu te amava. Eu jurei que sempre te amaria. Eu larguei tudo pra ficar do teu lado. Tu largou tudo pra ficar do meu lado. Nós éramos como aqueles casais apaixonados dos filmes que fugiam juntos e ficavam felizes e lindos para sempre. Olha que ironia, agora eu rio com escárnio pra aquela cabecinha de vento com os dreads na cabeça. Ta achando o que minha filha, que ele vai casar contigo? Não, ele vai casar com outra e ainda vai te convidar. É isso aí. A gente ama tanto que um dia acaba e se torna casamento alheio.

Claro, qual futuro eu esperava? Não haveria. Tudo que houve foi uma barriga grande e uma filha linda, só isso. Tudo o que houve foi um elo de ossos e carne que nos prende pra sempre, ainda que não tenhamos vontade. Lá estou eu, com meus vinte e tantos quase trinta anos, com as malas na mão e a criança na outra, cheia de coragem e dor, carregando anos de uma prisão domiciliar nas costas. Lá está você, inerte. Eu saio pela porta, morrendo de vontade de ouvir você me pedindo pra ficar. Eu saio pela porta e me decepciono quando não sinto seus braços fortes me segurando e impondo nosso futuro. Lá está você, apenas observando, de longe. Anos de promessas e tudo que eu posso ver na sua força e na sua masculinidade é uma irônica impotência. Anos de amor e tudo que eu posso sentir é uma solidão esmagadora. A gente segue em frente, eu segui em frente. É só isso que se tem pra fazer: seguir em frente.

Você nunca me pediu pra ficar, nunca me telefonou, nunca se lamentou. Você só ligou de vez em quando, quando batia uma certa tristeza na vida. Só lembrou de mim quando sua vida cheia de trabalhos e mulheres te dava uma folga e precisava de alguém que te puxasse pra realidade. Você sempre precisou de alguém que desse um impulso, de alguém que sentisse mais do que você poderia imaginar ser possível sentir, de alguém que te ouvisse chorar e ainda assim te achasse sexy. E sempre fui eu. Mas, por algum motivo, você nunca lutou por mim. Você simplesmente fechou a casa, pegou suas malas e foi pro norte enquanto eu rumava, despedaçada, para o sul. Você vai casar e eu ainda te amo. Mas você nunca lutou por mim.

Eu teria lutado por você. Mas certamente, nunca teria bastado.

Boca-da-Noite

Meu horário preferido de todos os horários do mundo. Os cheiros mudam, o clima esfria, o sol se põe. O céu dá lugar ao azul claro, escurecendo gradativamente. Crepúsculo. Esse era o nome alternativo para o horário que me engole pernas a fora. O espaço de tempo em que tudo parecer ser possível, como que por mágica.

Tenho pra mim que, é quando o sol se põe, que as fadas cantam em uníssono, agradecendo pelo dia que tiveram. Vampiros fogem à espreita, aguardando o melhor momento para sair de suas tocas. Asas de anjos batem num canto dourado de adoração ao sol que se deita sob o horizonte. As trevas que ressurgem da madrugada anterior, tapam-me até os ouvidos com sua energia revitalizada.

Debruço-me sobre as grades de ferro que impuseram no cais do porto. No horizonte, águas escuras agitam-se, furiosas. Venta. E o vento, assim como o poente, ajuda-me a discernir o real do incerto. Um dos meus lugares preferidos no mundo. Um dos únicos lugares capazes de me fazer retornar à essência de mim mesma. Há um silencio reconfortante naquele lugar, de forma que apenas um fraco zumbido penetra nos seus limites sonoros. Os zumbidos são os barulhos agitados e confusos da cidade.

Lá, a poluição era transformada em poesia. Lá, a realidade estava caindo, em fragmentos de uma dor imperceptível. Devo ser eu que insisto em perceber beleza onde só existem trevas, mas que mal pode haver nisso? A magia que embala o crepúsculo dos meus dias é tão pesada que posso senti-la caindo sobre mim. Algumas gotas caem do céu, a chuva de verão banha minhas ideias, amedronta meus medos.

É o crepúsculo, sempre belo.

É a Terra que me embala nos seus braços, quando o sol migra para o oriente.


 


 


 

Seis da manhã

São seis horas da manhã e eu ainda estou procurando um único motivo lógico para continuar pagando por isso. Sempre me arrependo de ir em festas, mas por algum motivo, acabo sempre voltando. É como um ciclo vicioso. Sempre tem um banner, uma promoção, uma amiga, um minuto de tédio que seja, que me convence a voltar. E então eu volto, toda empolgada. Me arrumo toda, passo o meu melhor delineador, me esforçando pra ter um efeito bem descolado e enfio na minha cabeça milhões de ideias pra fazer a noite valer a pena. Encho meu peito, pego meu cartão de crédito e vou. Vou mesmo, bem feliz ir fazer festa. Daí, tudo bem. Chego lá, é tudo super mágico e bonito. Eu fico encarando todo mundo pra mostrar como sei me maquiar direitinho, esperando alguma espécie de reconhecimento que jamais virá. E aí vem a minha primeira decepção: ninguém reconhece o nosso esforço em ficar apresentável. Apresentável pra quem? Festas não são pra isso, Sara. Festas não são pra isso.

Dou mais uma volta, com o coração explodindo dentro do peito e o tédio aumentando. São sempre as mesmas músicas, os mesmos caras com suas máscaras esnobes. São sempre os mesmos grupos sociais em subcategorias, as mesmas garotas com pele de porcelana que ficam tão bem de batom vermelho. Eu nunca fico bem de batom vermelho, nunca tenho um grupo de amigas que curtem um som indie e não tenho vontade de beijar nenhum bonitinho esnobe. Mas não posso me lembrar disso. Que tipo de garota descolada eu vou ser enquanto ir em festas for me fazer tamanho mal? Não, não, não. Ô amigo, me vê uma dose de tequila aí. Ô parceiro, me vê outra dose aí. Ô chuchuzinho, me trás tudo que tu tiver aí.

Essa sou eu, a grande quase escritora com milhões de trabalhos da universidade atrasados e muito álcool no organismo para entorpecer minhas ideias esquerdistas. A que se diz revolucionária e diferente, mas no fundo, também esconde uma princesinha fútil que adora se lamentar sobre a vida e esperar ansiosamente pelo idiota a cavalo que vai vir bancar o super herói. Bla, bla, bla. De repente, indie é a minha música preferida. O cara esnobe com o sobretudo parece ser lindo e eu nunca quis tanto algo na vida quanto eu quero me aproximar dele. Acabo de conseguir um grupinho de amiguinhas indies, que me emprestam seus batons vermelhos de todos os tons e rimos, radiantes, de frente para o espelho do banheiro. Eu estou tão bonita com esse vermelho prostituta que nem me importo se meu decote caiu consideravelmente para baixo. Minhas amigas me amam, e os bonitinhos prepotentes também. É a vida dos sonhos.

Até que a música começa a ficar repetitiva, os caras começam a ir embora, as amigas somem de vista e eu fico atirada em um canto escuro observando o rodopiar lento das luzinhas coloridas. Todas elas batendo contra a parede preta, refletindo meu sorriso desnorteado. Alguém bate no meu braço, tentando me puxar para a realidade. Não sei quem é, no momento estou chorando. Um rio de lágrimas silenciosas inunda minha garganta dolorida. Cadê meus cavalheiros das trevas? Cadê meus príncipes inalcançáveis? Eles também somem. Tudo nesse lugar parece ter data de validade, tudo se esvai em um tempo determinado. É como nascer e morrer numa noite só.

E, agora, eu estou escrevendo sobre o meu velório. E ele está cheio de luzinhas vermelhas, que iluminam minha palidez mórbida. Mas o que mais eu poderia dizer? Essa sou eu. Uma contradição com pernas. Aquela que se inspira com qualquer mera oportunidade de felicidade que se esvaia no segundo seguinte. Não sou do tipo que sonha com o para sempre. Sou mais daquela que se agarra em qualquer resquício de fugacidade, apenas para poder ter sobre o que escrever depois. Aquela que o nunca se encaixa perfeitamente bem atrás do "foram felizes".

Sou uma personagem criada para mim mesma, suportando todas as falhas de se ser humana. São seis horas e trinta e cinco minutos da manhã. Junto os cacos da minha dignidade e deixo oitenta e cinco reais no balcão. Um número justo, depois de todas as doses. Abro a porta vermelha, aceno um tchau rápido para o segurança que me observa com intimidade e saio para o raiar do sol que já não combina mais com a minha saia preta rendada. O brilho da minha blusa cinza não se encaixa no amanhecer alaranjado de Porto Alegre. Mas tudo bem. Logo estarei em casa e tudo não terá passado de mais uma noite conturbada com pesadelos e caras bonitos. Nada com o que se preocupar. Afinal, amanhã tem mais e nada poderá ser nunca lembrado, por que a noite não existe para aqueles que não acreditam no para sempre.


 

Pausa para a Lamentação

Tá, vou ser sincera. Me dói. Tantas coisas me doem, que eu não tenho coragem de falar. Mas não quero escrever de novo sobre coisas que eu queria fazer nem sobre como eu sou uma pessoa diferente e fria e isso me assusta. Não, não dessa vez.

Me dói saber que tudo saiu do meu controle. Que eu não dependo mais inteiramente de mim, mas de qualquer pessoa que tenha um bom coração e um pouco de boa vontade. Que tive que aprender a ser de gelo na marra. Que te amei demais e não soube o que fazer com tanto sentimento e na minha ignorância, te perdi. Me dói ter que aceitar só tenho um pé pra me suportar no mundo. Me dói ver tanta coisa errada no mundo e criticar todas essas mesmíssimas coisas erradas e ter que ver cada uma dessas coisas batendo na minha cara pra que eu aprenda a ser mais compreensiva. Me dói olhar pra parede do meu quarto e não ver nada além de uma parede, por que a desilusão tomou o lugar da esperança. Me dói ver teorias de tantas e tantas coisas e tanto conhecimento sendo distribuído e ter tão pouco tempo de aprender tudo. Me dói ter que erguer o queixo e saber que isso não afeta em nada o mundo lá fora e seguir sozinha, por que a vida é minha e o problema é meu. Me dói ter de ser tão individualista, mas se eu não for, acabarei indo pro abate como todos os outros bons seres. Me dói ter perdido a vontade, ainda que temporariamente, de lutar. Me dói admitir tudo isso e sentir toda a dor e todo o nada do mundo e ainda assim ter um resquício de esperança. Dói tudo, mas não dói mais nada também.

E toda minha dor existencial é tão mesquinha, patética, individualista e egocêntrica que ninguém precisa se preocupar com isso. Por que o problema é unicamente meu e a vida é unicamente minha. Então, que tal se fizermos exatamente o que somos ensinados a fazer? Cada um na sua, e todos que se fodam. Amém.

Acreditar

Vou me entupir de água, tentando me convencer de que é gim. Vou cantar todas as músicas do meu Windows media player, tentando me convencer de que estou em um lugar cheio de pessoas bêbadas e músicas gritantes. Vou flertar com todos os caras do chat do uol e do terra e de sites duvidosos, tentando me convencer de que sou irresistível e ninguém escapa do meu charme. Vou matar zumbis no meu vídeo game, tentando me convencer de que sou uma heroína épica em um planeta apocalíptico. Vou chorar por todas as pessoas que eu perdi, tentando me convencer de que sinto falta delas. Vou escrever textos estúpidos no meu caderno velho, tentando me convencer de que um dia serão úteis para alguma mulher triste que procura respostas para seus sentimentos patéticos em um livro de autoajuda. Vou tomar banho de água gelada, tentando me convencer de que assim poderei tirar todos os meus problemas junto com a sujeira do meu corpo. Vou dizer "eu te amo" diversas vezes, tentando acreditar que realmente sinto algo que há muito se fora em mim. Vou me arrepender, tentando me convencer de que realmente me arrependo. E, por fim, vou dormir mais uma vez tentando me convencer de que amanhã tudo vai estar bem e meus pés vão encontrar o chão novamente e minha vida será incrível, por que um dia ela já foi incrível e pode ser assim de novo e de novo e quantas vezes eu quiser, desde que me convença disso. Nem que seja apenas mais uma vez.

Fogo e Pólvora

Eu te amo. Mas eu não sinto mais isso. Ta, desculpa, eu deveria ter explicado antes de dizer isso tão diretamente, mas as coisas são assim. Eu... não sei mais como explicar tudo isso. Numa hora eu estou criando diversos devaneios sobre nosso possível futuro e na outra eu estou questionando a minha capacidade de acreditar em um futuro que provavelmente não vai existir. Dizem que o amor nunca deve ser conjugado no passado. Mas isso se for o amor de verdade. Aquele que nada derruba, nada questiona. E o nosso amor? Ah cara, nosso amor foi muito questionado e muito derrubado diversas vezes. Teve desconfiança e discussões por muito tempo. E mesmo assim, era amor. E se o que eu to pensando vai realmente acontecer, então eu continuo dizendo que era e é amor.

Eu não te amei, eu te amo. Agora e sempre. Não da mesma forma, até porque eu acredito que não amamos as pessoas do mesmo jeito e também por que o sentimento é uma coisa que nunca acaba, apenas se altera, mas definitivamente continua sendo amor. Vai, pode dizer que são pensamentos clichês, que são frases retiradas de algum livro. Mas eu não me importo. Por que é verdade. Eu não sei se o que tu sente por mim é amor ou se era, o que nos leva novamente à questão do ser ou não ser amor verdadeiro. Mas a verdade, aquela que vai ficar nos nossos corações pelo resto da vida, é aquela que somente tu e somente eu saberei. O que se passa por dentro, não por fora. Deixemos de palavras e prestemos atenção nos sentimentos. Eu te amo. Eu te amo. Qual a dificuldade em perceber isso?

É amor. Inegavelmente amor. Irremediavelmente amor. Simplesmente amor. Ironicamente amor. Merecidamente amor. É amor.

Mas não o amor com o qual estávamos acostumados, e sim aquele que sempre tivemos, lá no fundo, disfarçado em nome do desejo e da paixão. Era amor e sempre foi e continua sendo. E isso nos assusta por que nos achávamos incapazes de nos amarmos desse modo, mas não somos. É o amor da confiança, da parceria, da cumplicidade. E o que nos fez ver isso, foi a tentativa falha de alimentarmos nossa sede carnal. Eu deslizando por tuas mãos, e tu se prendendo nas minhas. Furiosos, famintos, malucos, apaixonados, fugazes. Acabamo-nos. Como fogo e pólvora que num beijo se consomem, já dizia Shakespeare. E, já que citei isso, acabo de me lembrar também de que nossas alegrias foram bem violentas. E alegrias violentas, tem finais violentos.

E o final? Acho que já disse.

sábado, 15 de setembro de 2012

Diário de uma Vadia Oportunista

13 de setembro de 2012

11:30 da manhã, em algum ônibus de Porto Alegre

Jovens universitários lutavam por um lugar no transporte coletivo que se aproximava. Eu, munida de minha perna de ferro, já estava preparada para a guerra. Qualquer coisa era só pôr o pé que eu não sinto por entre as pernas de quem me pisoteia e deu! Nada de dor, nada de brigas. Todo mundo me pisando sem se importar e sem que eu sinta absolutamente nada. Acontecer uma coisa dessas com a gente tem lá seus privilégios.

Mas é claro, para melhorar minha situação, eu estava sem passagem. Meu passaporte de isenção estava com uma falha. Não, não diria bem uma falha, mas uma intromissão da EPTC cancelara meus créditos, e lá estava eu. A garota da perna de ferro, escondida por baixo de panos e panos de roupas discretas, para poder evitar as curiosidades alheias. Depois de toda aquela vasta onda irreconhecível do inverno, eu estava desacostumada a andar por aí com as belas pernas à mostra, impondo respeito onde quer que passe. Depois que se vive uma vinda inteira aprendendo a estar escondida e longe dos holofotes, é muito estranho finalmente ser notada. E nem é por algo que me orgulhe ou que me faça sentir especial. Quer dizer, especial até me sinto. Mas não de uma forma boa. É mais como um caso especial de aberração, ou uma prova de superação como diriam os positivistas. O fato é que, escondida ou não, eu tenho certos direitos reconhecidos mundialmente (ou nacionalmente, se preferir). Como por exemplo, entrar em filas preferenciais nos bancos – algo que tem provocado a revolta de dezenas de clientes alheios à minha condição.

Tem sido engraçado, realmente engraçado perceber o quão as pessoas podem ser irritantes quando não compreendem. Logo eu, que sempre fora a invisível, desconhecia da violência populacional contra quem se aproveita das situações sem motivo aparente. E, devido à minha discrição sobre minha, hum, como devo dizer, "deficiência", tenho sido taxada de vadia oportunista. É. Bem isso. Vadia oportunista. Aquela que se acha no direito de se aproveitar dos outros sem o mínimo motivo. E, pra ser honesta, ainda não sei qual rótulo é pior. Ser reconhecida como "A menina do caminhão" pode até ser legal quando a pessoa esbugalha os olhos e acha que eu sou um fantasma ou uma espécie de super-heroína dos quadrinhos geneticamente modificada que suporta pesos enormes e sai ilesa e tal. Mas ser taxada de vadia oportunista? Bem, isso vai um pouco além das minhas expectativas.

O fato é que, com essa minha pseudofama de aproveitadora, acabei por ser agredida verbal e moralmente no tal do ônibus. E por nada mais, nada menos do que a própria cobradora. O que fiz? Chorei. É, eu sei. Fui covarde e mulherzinha. Mas acho que eu tenho o direito de ter sentimentos, né? Tente entender: Estava eu lá, sentadinha no bonito banco amarelo que fica atrás do motorista, fazendo de tudo para passar desapercebida, quando a adorável cidadã reconhece-me e julga-me com sua notável percepção de justiça. Esqueçamos que os ônibus são públicos e que a bunda é minha e eu a coloco a onde quiser, e imaginemos um mundo onde os cobradores tem a índole respeitável e, podem sim, gozar dos mesmos poderes concedidos, em tempos atrás, somente a juízes competentes para exercê-los. Ora, que mal ela estava fazendo, afinal? Só por ter proposto a mim, a vadia oportunista, a possibilidade de retirar meu traseiro imundo de cima de um banco reservado especialmente para o doce senhor de pernas fortes e intactas que se mantinha em pé e completamente alheio ao meu tamanho desrespeito, não significa que eu deva me sentir ofendida ou que ela fosse, no mínimo ignorante. Pobre mulher! Estava apenas exercendo seus conhecimentos sobre bondade e justiça que a ela são impostos pelo alvorecer do reconhecimento cobralístico dotado aos cobradores brasileiros!

Ora, que monte de merda! Desculpem-me o sarcasmo, mas não pude evitar. Quem acompanhou a cena, pode testemunhar a meu favor com o que, de fato ocorreu. A mulher se impôs de forma autoritária, exigindo uma ação que a mim era inacessível ou incabível. Fui tomada pelos nervos e, num triste surto de falha na percepção dos sentidos, respondi negativamente ao seu pedido, transformando-me numa vadia oportunista debochada. E a situação só piora... Passageiros, não menos dotados da percepção da justiça e dos poderes de julgamento, também se revoltaram contra o crime gravíssimo que eu acabara de cometer. Exercendo seus deveres como cidadãos moralistas, eles se viram no direito de me expulsarem do lugar também! Ameaçaram-me, julgaram-me, ofenderam-me. E o que eu fiz? Novamente, digo que chorei. Meus nervos estavam confusos, meus pensamentos não vinham em linhas retas. Como algo desse gênero poderia estar acontecendo? Não sei. De fato, ainda não compreendo.

Ao meu lado, um bom senhor lia calmamente seu jornal. A bengala dependurada pela perna torta denotava seus conhecimentos a cerca do meu também sofrimento. Chorei e, desamparada, recorri às suas desculpas. Pelo menos alguém precisava saber que eu não era o que eles afirmavam. Nos demos bem, conversamos, ele me fez sorrir. Lá no fundo do ônibus, o motim estava formado. Ameaças violentas começavam a tomar forma, uma grande amiga minha gritava a meu favor, a cobradora se mostrava impassível, eficiente. Estava com o rosto orgulhoso a encarar a discussão que ela própria dera origem. Não prestei-me a ouvir. Tudo que podia entender eram as palavras doces do senhor ao meu lado que, coincidência ou não, acabei por descobrir que era meu vizinho.

- Meu Deus, tu é a menina do caminhão?

Dissera ele, sendo, pela primeira vez desde que eu entrara no ônibus, o único a reconhecer a minha verdadeira identidade.

- Sim... – dissera eu, incerta sobre como ele tinha conhecimento disso.

A partir daí, a conversa não teve fim. As lágrimas caíam, não mais por injustiça, mas por emoção. Ele contara-me sua historia, e eu, em troca, confiara minhas angústias a ele. No fundo, vozes haviam cessado. A guerra parecia findada. Minha alma ainda doía, mas eu já não me importava: Meu novo amigo estava me mantendo entretida, longe das minhas dores egoístas. A inquisição estava quase no fim, quando a bruxa em questão se uniu a um bom mago que a fizera ter coragem para seguir em frente. Observei, cheia de mágoa, a indiferença da cobradora que evitava a minha direção. Levantei-me, expliquei ao motorista a situação e decidi por seguir meu caminho. Não acho que tenha sido por maldade, mas sei que foi algo mau. A ignorância é sempre algo mau, no final das contas. É a doença que salva e ao mesmo tempo, limita um povo que vai atrás de mitos sem o mínimo de embasamento. Juntei as migalhas que restaram da minha dignidade, enchi o peito de ar e disse:

- Hey amiga! - Ela virou seu grande, pardo e irônico rosto para mim. Eu queria tanto ver qual era a expressão escondida por baixo daqueles óculos escuros... Raiva? Vergonha? Indiferença? - Obrigada pela consideração.

E desci.

Logo atrás de mim, o velho, alegre homem, seguia com dificuldade pelas escadas a baixo.

- O senhor precisa de ajuda? - Disse eu, ao vê-lo caminhar de forma desengonçada pela agitada Assis Brasil. Fiquei um tanto atordoada com a quantidade perigosa de pessoas que se aplumavam pela calçada, uma ameaça à manutenção da sua jornada.

- Preciso, preciso sim. – disse ele, tirando-me do torpor pós-ataque crônico de nervosismo.

- O que posso fazer? – disse eu, ansiosa por imaginar se o peso dele seria suportado pelo meu corpo trêmulo. As pernas estavam como varas bambas, meu organismo ainda estava sob o efeito da adrenalina. Os olhos ardiam, ameaçando reproduzir mais uma quantidade implacável de lágrimas. Respirei fundo, pelo que parecia ser a milésima vez em menos de trinta minutos e aproximei-me dele, já preparando meus músculos tensos para a sobrecarga de seu peso, quando ele, abruptamente, disse-me:

- Não saia correndo.

Aquilo havia me pegado de surpresa. Eu esperava que ele me pedisse para ajuda-lo a caminhar ou algo do tipo, mas não. Eu então sorri, enquanto observava seus passos cambaleantes ganharem um rumo. Atravessamos a rua, pelo que pareceu uma eternidade, enquanto eu pacientemente aguardava que ele me acompanhasse.

- Por que o senhor não consegue caminhar direito com aquela perna?

Disse, apontando para a perna direita. Eu bem sabia o quão indiscreta uma pergunta dessas poderia soar nos ouvidos de alguém que se acaba de conhecer, mas ele já sabia de tudo que havia ocorrido comigo. Então talvez, pensei eu, pudesse não ser tão ruim. E também, eu de nada entendia sobre recuperações de tetraplégicos. Aliás, eu não sabia nada sobre tetraplégicos, a não ser a aparente mentira de que os movimentos jamais voltariam.

Um alívio me percorreu quando percebi em seus olhos que minha pergunta não o havia ofendido. Na verdade, ele parecia muito íntimo de mim, como se nos conhecêssemos de longa data, ainda que houvéssemos conversado por poucos minutos como dois desconhecidos em um ônibus, unidos pelos desastres da vida.

- A tetraplegia afetou mais a minha parte direita, entende? Minha mão e perna direita ainda não voltaram totalmente, daí eu não consigo andar direito.

E ainda assim, ele estava na minha frente, de pé, caminhando. Sua velha bengala de madeira dava-lhe apoio, as pernas cambaleantes pegavam impulso com uma força de vontade que parecia transpirar de sua pele jovial. A idade e a condição não o importavam. Senti-me pequena e fraca e terrivelmente jovem. Aquele homem tinha me passado mais sabedoria em trinta minutos do que dez livros de auto ajuda em oito anos ou quinze sessões psicológicas em seis meses. Ele ia contra todos os meus padrões e probabilidades.

- Entendi. – dei de ombros, tentando não parecer tão encantada. Às vezes as pessoas se incomodam quando olhamos pra elas como se fossem importantes demais. Pelos menos, eu me incomodaria. – Desde que esteja caminhando, já é bom, certo?

Ele sorriu. Uma luz difícil de se ver por aí estava incendiando a expressão cansada do seu rosto e, de repente, eu também me senti iluminada.

- Isso, isso mesmo.

Olhei para a rua lotada do outro lado da faixa de segurança, enquanto os semáforos preparavam-se para abrir passagem aos pedestres. Com um pesar, lembrei-me que tinha um compromisso. Eu não fazia ideia de quando o veria de novo e isso quase me deprimiu: que outro estranho ouviria uma maluca chorar sem parar sobre seus infortúnios insignificantes em pleno ônibus?

- Bom, eu tenho que ir. Foi bom conhecer o senhor.

Ele me olhou sorrindo, ainda daquela forma tenra.

- Tudo bem, eu também tenho de ir - De forma cortês, ele beijou a parte de cima da minha mão – E tu ainda vai ser muito feliz, sabia?

Eu sorri, tentando não parecer patética. Mas estava contente, afinal. Aquele homem havia salvado a minha manhã. Quiçá, até mesmo o meu dia. Ele foi, cambaleando para a parada, enquanto eu seguia rumo ao outro lado da rua. Olhei para o lado, tentando vê-lo e só avistei o aceno de sua mão. Pude ouvir, e gostei disso, a voz rouca que dizia:

"A gente ainda se vê por aí".


 

A última vez

Nuvens brancas se moviam lentamente pela imensidão azul do céu. Havia um leve sopro quente espalhado pelo vento que vinha diretamente do sul. Os dedos dele estavam a cinco perigosos centímetros dos meus. Eu estava cansada de mentir pra mim mesma ou tentar parecer indiferente, mas não havia muitas possibilidades de escolha. Ele estava claramente ignorando a nossa proximidade intoxicante. Ele estava ignorando o palpitar desenfreado do meu coração frenético, ainda que eu pudesse jurar que ele também estava nervoso ou meramente incomodado com a minha presença.

- Fazia tempo que eu não sentia isso.

Sua voz parecia distante e carregada de dor. Dor disfarçada é claro. Eu não queria criar esperanças e acreditar que aquela dor se devia à saudade. Seria bom demais pra ser verdade. Embora eu não tivesse entendido sobre o que exatamente ele estivesse falando.

- Não sentia o quê?

Ele suspirou. Um suspiro pesado, magoado. Ele parecia escolher as palavras com cuidado, como em um jogo de minas: Qualquer interpretação errada poderia fazê-lo explodir.

- Isso. Essa... Leveza.

Seus olhos encontraram os meus, no exato momento em que eu conseguia entender seus sentimentos: Ele estava confuso entre gostar da minha presença e repudiá-la. Eu sabia perfeitamente como era a sensação. Também estava inundada de contradições.

- Eu entendo.

Meus dedos escorregaram pela grama, batendo de leve nos seus. Ele pareceu tremer sob o toque e se encolher, como que se dando conta do perigo que isso demonstrava. Sua expressão permanecia impassível, distante, triste. Eu não o entendia. Não havia como. Por que ele estava aqui, afinal? Se me odiava tanto, se, como ele mesmo disse, não tinha motivos para vir. Se tudo já estava resolvido e enterrado, se tudo já estava como deveria ser. Se a flecha já tinha sido lançada e não podíamos mais voltar no tempo para impedi-la de acertar em cheio a vivacidade do que antes achávamos ser amor? Não o entendia. Não podia. Era complexo demais para as minhas perspectivas femininas de realidade.

- Será que entende mesmo?

Ele me deixava confusa. Do que estávamos falando?

- Entendo. Entendo sim.

O campus esvaziava-se, estávamos em plena hora de aula tentando pôr a conversa de meses em dia. O que não era algo muito fácil, diga-se de passagem. Quando se perde o contato com alguém que antes fora muito íntimo, tudo que resta é uma fumaça insistente de desconforto. A pessoa que te conhece melhor do que todos os outros, de repente, se torna um estranho. Só mais uma das regras claras que emolduram o final de um relacionamento fracassado. Mas o que eu poderia fazer? Eu sentia sua falta. E, ainda que ele não sentisse a minha, queria tê-lo por perto.

A tarde se passou de forma alegre e estranha. Sorrimos, conversamos, criticamos. A pontinha do mundo de confiança que ele me proporcionava finalmente começava a se expandir de uma forma saudável. Mas, lá no fundo, algo estava completamente errado. Ele tinha medo de mim. Ou será que eu tinha medo dele? Não sabia, mas podia sentir o desconforto crescendo à medida que nos entendíamos. Não parecia certo me relacionar tão bem com alguém que, tempos atrás, tinha feito nascer em mim um ódio crescente pela mesma pessoa. Eu, no meu desespero por ignorar isso, agarrava-me com todas as forças em qualquer assunto que nos aproximasse, em qualquer piada que descontraísse meus músculos tensos.

A notável atração que as minhas células ainda sentiam precisavam ser aniquiladas, caso contrário, não daria certo. Eu sabia disso. Ele também sabia, embora eu estivesse certa de que não havia reciprocidade. Claro que não havia. Só eu era a maluca ali, só eu que estava maluca pra abraça-lo, só eu que sentia uma vontade irritante de chorar cada vez que percebia o quão diferente e distante ele estava de mim. Eu sempre tinha sido a maluca da história das malucas. A que sente tudo sem que ninguém possa saber de nada. A dama de ferro, pegando fogo por baixo da armadura forte de chumbo. Claro, eu já estava acostumada a ser maluca que usava a máscara da mais normal das normais. Claro.

Eu podia ter me agarrado a mais um segundo da presença dele, mas não quis. As coisas estavam indo por um rumo que eu já havia previsto há tempos atrás, e, de súbito, tudo fez sentido. O sol despediu-se no poente e a noite caiu. Minha perna dolorida protestava contra a minha vontade de permanecer caminhando com ele pelo resto da noite e, sem muita vontade, despedi-me. Aquela máscara de tristeza o encobria, superficialmente, ainda que eu tivesse a fraca impressão de conseguir tê-la quebrado com o passar das horas. E, naquele momento, eu tive a fraca impressão, a forte intuição, de que era a última vez. Era isso. Minha ultima chance. O olhei, atentamente, tentando gravar o rosto, o perfume que tantas vezes me tirara do sério, a voz que tantas vezes me acalmara, ele. Me apeguei, desesperadamente, a cada centímetro daquela pessoa que tanto representara pra mim um dia. Como num velório, quando a gente sabe que só vai ver o defunto de novo em fotos. Sem querer ser exagerada, mas foi assim. Despedi-me dele, com um aperto no coração. Uma vontade de abraça-lo, de chorar, de dizer adeus de forma bonita. Mas tudo isso só ficou na minha cabeça. A cabeça da maluca cheia de sentimentos não recíprocos. Ele calmamente disse-me tchau. Calmamente observou enquanto eu ia embora. Calmamente deu seus passos rápidos no sentido oposto ao meu. Calmamente foi embora pela ultima vez.

E eu?

Eu sorria, indiferente. Acenei um tchau nulo de sentidos. Virei-me, rapidamente, e segui meu rumo como quem não se importa e tem muitas coisas pra fazer no dia seguinte. Eu sorria, enquanto tudo dentro de mim chorava. Sem ter certeza que, aquela, seria a minha ultima chance de fingir indiferença. Sem saber que eu iria embora da vida dele pela última vez.


 


 

Outrora

Realidades se chocam em uma matriz de números caindo. Milhões de pessoas que vivem enquanto pensam estar, de fato vivendo. Minha mente analisa calmamente cada uma delas: Paradas, parecem inocentes. Em movimento, são como animais selvagens. Vivo em uma selva que se auto intitula sociedade moderna. À minha direita, gente se empanturrando de hambúrguer. A maionese escorrendo pelo canto da boca ávida. Marcas de gordura nos dedos lambuzados. Litros de refrigerante caindo e manchando as calças quase limpas.

É meio-dia, a hora mais suja do dia. O sol se impõe, orgulhoso, no centro do céu, abrindo os poros sujos de quem se esconde, assim como eu. A hora em que o proletariado foge de sua escravatura e experimenta o feio gozar alimentício. Não há classe no centro poluído de Porto Alegre. Há papéis no chão, rostos de políticos sendo pisoteados por um povo que corre ignorante e faminto. Há gritos, comerciantes que exaltam suas vozes, implorando por alguma atenção que salve seus estômagos da miséria. Há o cheiro da fritura, os carros que buzinam, a fumaça negra que invade minha atmosfera outrora pura. Há também a beleza corroída dos prédios históricos, o cheiro pútrido que impregna as paredes de um mercado público outrora imponente e luxuoso. E há, ainda, o fraco retumbar da justiça, emanando ondas surdas de um grito inútil de guerra, pelas entrelinhas de um filme realístico do cotidiano brasileiro.

Pessoas se amontoam em frente à prefeitura, falam, pulam, gritam, em vão. Não temos tempo para apoiá-las, precisamos trabalhar. Apenas os vagabundos tem tempo pra coisas inúteis, como protestar. Tudo o que queremos é chegar em casa, assistir televisão, dormir e ganhar nosso dinheiro no final do mês. A decadência é garantida por promessas que compactuam um contrato injusto de servidão. Os direitos trabalhistas já estão ultrapassados, ninguém precisa disso. Precisam apenas de alguém que garanta seu sustento por trinta dias, seu luxo por dois dias, sua fidelidade por quarenta anos. Paralelamente à corrida na selva, índios se amontoam na praça principal, impondo um décimo de sua cultura outrora valorizada. Crianças sujas, com seus olhos inocentes, pulam. A música que sai do rádio ultrapassado não é entendida por ninguém. Que língua é aquela? Serão os tupi-guaranis? Não se sabe. São apenas índios pobres sem alguma outra perspectiva de vida, se não a esperança de ganhar algum renome em forma de centavos que garantam seu almoço e o próximo próspero CD, é claro.

Um cão morre lentamente, no asfalto que queima em uma temperatura anormal de trinta e cinco graus célsius. Ninguém pode enterrá-lo de forma justa, nada de lágrimas, nada de cerimônias afetivas. É apenas um animal que, na sua irracionalidade, perdeu a vida ao atravessar as ruas agitadas da cidade grande. Mais um dentre os montes de vira-latas que têm sua existência ignorada e sua morte sem significância alguma. Cães que escondem o rabo entre as pernas, implorando por atenção ou apenas um pedaço de carne. Cães que sofrem, de dia claro e morrem ao meio dia na sua busca frenética por carinho. Os humanos, outrora sentimentalistas, finalmente evoluíram para a fase robótica do trabalhador egoísta: Seu sofrimento ocupa espaço suficiente em seus corações para que se deem ao luxo de se quer pensar no sofrimento do outro. Quem dirá no de um mero animal.

A morte, outrora assustadora, significa libertação de uma vida recheada de injustiças. É o século XXI com suas regras controversas, sua medicina exaltada, seus computadores eficientes, sua felicidade ignorada, o futuro de uma humanidade recheada de guerras e selvagerias irracionais se movendo, cada vez mais, rumo ao apocalipse requintado. As guerras estão extintas, estamos em uma época em que as ofensas sorridentes são o maior frasco de veneno. Outrora, Romeu precisara de um boticário para morrer por sua amada. Hoje, precisamos apenas de uma língua e um pouco de malícia. É efeito certo e eficaz, convenhamos, nada poético. Shakespeare que me desculpe, mas romantismos suicidas estão totalmente fora de moda.

Nas bancas de revistas, sorrisos forçados emolduram rostos criados no photoshop para agradar nosso ego mau acostumado com uma perfeição inalcançável. A moça da banca de jornais esconde sua beleza em baixo de três camadas de corretivos, pó e base. Seus dezesseis anos não são suficientes para manter uma pele oleosa livre de acne, por isso, ela esconde. Seu cabelo castanho se rendeu às luzes loiras, ruivas, azuis. A barriga, apertada por uma cinta de emagrecimento, se contrai enquanto o estomago ronca de fome. O pouco dinheiro que ganha é reservado para os shakes milagrosos que as famosas tomam para manter o corpo impecável. A jovem é anêmica, mas não se importa: Vê-se como linda. Ao seu lado, o namorado musculoso esconde na mochila pesada doses fortes de anabolizantes. Ele gosta de parecer com os caras que saem nas revistas másculas em cima de motos vorazes. O casal perfeito, reflexo de uma cultura doente.

Volto para o presente, dou play. Tudo recomeça, os gritos, a sujeira, a fumaça. Corro para pegar o ônibus no final da linha, que se prepara para partir. Antes de ir, escuto uma última balada. Na praça da matriz, pobreza e luxo emolduram um local outrora limpo. Um maltrapilho de cabelo comprido embala sua música no violão velho. Da sua garganta ébria, palavras bonitas ressonam e ativam meus ânimos quase mortos: "Quem me dera, ao menos uma vez, acreditar que o mundo é perfeito e que todas as pessoas são felizes".

O homem não sabe, mas embalando as palavras de Renato Russo, passou a mim certa parcela esperança que, outrora, matara o mesmo músico.