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quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

With or Without you - U2


Os táxis andam rápido pelas ruas. Semáforos apitam, no estrondoso movimento da massa populacional. Estrelas faíscam lá no céu, ignoradas pela grande rapidez dos dias. Eu continuo em frente, com ou sem você. As garrafas de cerveja estão empilhadas nas ruas cobertas de podridão. Nós nos perguntamos o que fazer com o tempo extra de sofrimento. Não há muita coisa a se fazer, na verdade. Apenas continuamos em frente, por que é assim que eles dizem que devemos fazer. Você não pode voltar atrás depois de já ter seguido por uma certa trilha. O caminho se desfaz e a volta é impossível. Mas está tudo bem, eu posso viver com ou sem você. Não estou sozinha, não como deveria estar. A água profunda dos dias foi domada. Estou boiando na superfície. Posso respirar agora. Você não vê? É extremamente mais fácil boiar na superfície. Finalmente compreendo todas as grandes babaquices cometidas por pessoas vazias. A covardia está estampada em cada rosto bonito. Boiamos juntos na superfície. Aprendemos a boiar depois de nos afogarmos na profundidade das águas turvas dos dias. É nosso mecanismo de defesa mais poderoso. Nossa forma de virar as costas para o mundo que nos engoliu. Sinto a profundidade lá embaixo. Observo de longe pessoas mergulhando juntas. Agora posso até sentir certa admiração pelo amor alheio. Mas prefiro boiar, por que não sei nadar. Não sei se algum dia vou aprender a nadar o suficiente para sobreviver a isso. Sei que aprendi a boiar, na imensa solidão da minha covardia. Eles mergulham de mãos dadas. Nos observam com compaixão, dispersos acima do planeta cheio de alegria e equilíbrio. Eu observei demais quando estava lá embaixo. Eu coloquei minha cabeça para fora da água milhões de vezes, desejando estar na superfície. Não pensei que se realizaria tão cedo. Existe uma certa compaixão entre as pessoas vazias. Estamos todos fadados ao mesmo destino incerto da correnteza. Nos deixamos levar sem nunca entrarmos um centímetro sequer. Está tudo bem. Posso viver com ou sem você. Estou na jogada. Estou de volta. Mal posso esperar para boiar em outros lados. Apenas seguimos em frente, por que é isso que nos ensinam a fazer. Você precisa continuar e você aprende a lidar com isso. A superfície é um lugar maravilhoso, não quero mergulhar nunca mais. Escrevo esse texto debaixo d'água, por que a superfície não me permite pensar sobre essas coisas. Minha cota de ar está acabando. Vejo sombras se aproximando para me ajudar. Não posso mais ficar aqui. Saiba apenas que não importa a imensidão da coragem, nunca será o suficiente para aprendermos a respirar sozinhos. A superfície me espera. Preciso ir. A notícia boa é que posso respirar com ou sem você.


sexta-feira, 28 de novembro de 2014

As Vantagens de Ser Invisível

Existem momentos na vida. Momentos em que podemos jurar que o infinito realmente existe e está dentro de nós. Hoje eu tive um desses momentos. Depois de tanto tempo sofrendo por não me sentir mais como um ser humano normal, eis que finalmente eu tive um momento de emoção completa. Você não tem muitas opções quando seu momento chega. Você só pode se entregar, ou segurar a emoção até que exploda em outro momento. Mas enquanto eu estava sentada no carro, entre a minha irmã e a minha mãe, escutando a conversa do meu irmão com a amiga dele nos bancos da frente e a brisa do mar entrando pela janela, só consegui sentir aquilo. Aquele sentimento de tristeza infinita. Quase como se, de repente, tudo estivesse desmoronando na frente dos meus olhos. E eu senti tanto amor e tanta dor ao mesmo tempo, que não pude segurar. A dor transbordou pelos meus olhos, meu corpo dava espasmos desesperados. Eu tentei ser discreta, mas meu nariz simplesmente não consegue funcionar direito quando o choro vem, então qualquer um percebe as fungadas silenciosas. Eu percebi que poderia estar com problemas psicológicos enquanto chorava dentro do carro numa manhã comum de novembro. Eu percebi que a vida tem sido muito má ultimamente e tem acontecido muitas coisas ruins. E as pessoas tem sido cruéis e os acontecimentos tem acabado com a minha esperança. E então meu aniversário tem sido uma festança infinita desde ontem. O bolo e os salgados continuam aparecendo na minha frente, surgindo em todas oportunidades. Os presentes são maravilhosos. Você não me felicitou, mas veja que engraçado, tem um cara que eu não conheço que veio no seu lugar. E isso realmente me pegou desprevenida, por que eu não sou o tipo de garota que chama a atenção de caras desconhecidos. E então também tem esse livro maravilhoso que fala sobre os traumas de tantas pessoas sob a perspectiva de um cara com problemas em lidar com a vida social. E esse livro que eu li em apenas um dia, enquanto minhas emoções afloravam, traduziu com muita perfeição o quanto a vida é dificil de ser levada. Exceto quando alguma grande entidade do universo resolve que finalmente chegou a sua hora de ser presenteada e o planeta começa a girar pro lugar certo e você sente que foi escolhida pra ser feliz. Eu não pensei que fosse dizer isso tão cedo, mas estou feliz. Absurdamente. O mais assustador é que isso não tem nada a ver com homens ou namoros ou amores ou paixões. Eu estou puramente feliz. Feliz pelas conquistas, feliz por que minha mãe me abraçou hoje enquanto eu chorava na praia depois de conseguir pisar pela primeira vez em tanto tempo dentro da agua sem que ninguem precisasse me segurar. Feliz por que meu irmão parecia ter voltado no tempo e esquecido a guerra travada entre eu e ele nos utimos anos, desde que comecei a pintar o cabelo, fazer tatuagens ou não estudar para as provas. Feliz por que o dia estava ensolarado e o calor poderia estar insuportável para todas as outras pessoas em casa ou no trabalho numa sexta-feira comum, mas para mim estava ótimo. Feliz por que eu finalmente declarei trégua ao sol e nós nos demos tão bem que eu até exagerei na dose e agora preciso disfarçar a vermelhidão dos meus ombros queimados. E esse momento, o momento em que me senti infinita, foi suficiente para tirar de mim todo o mal dentro do meu coração, o peso que tem me atirado pra baixo por tanto tempo. Essas coisas são estranhas. Charlie estava tremendamente certo quando descrevia a dificuldade que temos em lidar com as outras pessoas. Uma das vantagens de ser invisível é que você consegue perceber muito em pouco, a capacidade de interpretação corporal fica muito mais afiada. Então eu posso dizer que a felicidade foi mútua quando minha família me viu abrir os braços abaixo do sol de trinta graus e deixar que as ondas me empurrassem em direção à beira do mar. E eu posso dizer que esse foi um dos momentos mais incríveis que eu jamais pensei que teria. Por que, se você quer saber, ainda estou emocionada. Não somente pelo sol, ou pelo sorriso da minha mãe, ou pela anacronia do meu irmão ou pela emoção da minha irmã. Mas também por que eu finalmente parei de me importar com tantas coisas e decidi isso há apenas alguns dias atrás. Quando eu disse ao universo que não me importava com ele, desde que ele fizesse as coisas certas, as coisas certas começaram a acontecer por si próprias. E agora eu sinto que não preciso mais beber para amortecer a dor ou fumar para esconder o choro atrás da fumaça. Eu sinto que esse amor dentro de mim precisa ser demonstrado. E sinto um êxtase anormal por também ter revolucionado a história do meu rendimento acadêmico. É como se, pela primeira vez em muitíssimo tempo, ser a pessoa que eu sou fosse a coisa correta a se fazer. Não que eu tenha muita escolha, mas posso dizer que estou feliz em ser quem sou. E isso também me dá vontade de chorar, mas acho que minhas emoções estão fragilizadas graças ao sol e ao sal e ao sorriso da minha mãe. E também tenha alguma coisa a ver com os pastéis e as empadas e o bolo surpresa que é o meu preferido e todo mundo resolveu comprar pra mim. Só espero que esse momento seja eterno na grande imensidão de momentos efêmeros.. E que eu consiga, ao menos mais alguma vez na vida, me sentir infinita.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Epifania Monocromática

Eu cansei de cavar o poço. Cansei de sofrer e continuar procurando mais sofrimento. O alcool e o tabaco são distrações, formas mais simples de lidar com a dor. Mas eu estou simplesmente tão cansada de tentar lidar com isso. Com a vontade de me jogar de um precipício e sair nadando em direção ao nada. Estou tão cansada de sentir a alma latejar. Eu andei procurando por maneiras mais baratas de lidar com esse sentimento de impotência. Não encontrei muitas saídas. Tudo que eu encontrei foram mais motivos pra continuar lutando. Não é possível que a vida se resuma a isso. Que a morte do amor seja maior do que a minha vontade de desbravar o mundo. Não posso aceitar morrer assim. Dei por conta disso hoje, quando acordei depois de 12 horas em coma de ressaca e coloquei todo o meu estômago pra fora em um líquido viscoso e amargo. Algo que eu gosto de chamar de o vômito da dor. O vômito da dor me fez perceber que eu ainda não morreria, só precisava expelir de mim tudo que me fazia mal. Depois de ver o mundo girando por um dia e meio, nada como colocar todos os resquícios de sentimentos ruins para fora. Então percebi. Percebi que não queria morrer. Por que, acredite, eu pensei que fosse. Hoje, lá pelas 6 horas da manhã, quando me dopei de dramin rezando para que o enjôo passasse depois de uma noite inteira sonhando com coisas malucas. Meu corpo inteiro vibrava, sentia minha cabeça despencando. Quase morri.

Percebi que estava desejando agulhas com soro nas minhas veias, um hospital com cheiro de morfina e um enfermeiro que seria doce na medida certa, com suas roupas brancas sorrindo para mim enquanto eu fechasse meus olhos e fosse para um mundo sem dor. Percebi que quase estava morrendo. Meu esôfago queimava. Senti o estômago dar pulos. Comecei a conversar com Deus. Pedi desculpas por ser rebelde. Depois implorei por misericórdia. Por favor, Deus, não me deixe morrer. Por favor, Deus, me ajude a vomitar. Por favor, Deus, eu juro que não beberei até 2015. E assim foi. O estômago recobrou as forças e conseguiu expelir de mim o alcool acumulado com o bolo de chocolate que não me fez bem. As doze horas de coma silencioso saíram de dentro de mim. Sobrou a vontade, a ansiedade, a monotonia dos dias ganhos. Sobrou uma vida com expectativa de sessenta anos e meio de dor e alegria. Não estou preparada para morrer, disse eu a Deus. Não estou preparada para largar tudo e me acovardar no mundo dos mortos, disse eu a Deus. Não vou beber mais, disse eu a Deus. E assim será feito. Até que Deus seja esquecido novamente e venha cobrar minhas promessas diretamente nos portões do inferno. Até que eu perceba que o poço sem fim dos meus dias não irá me levar a lugar algum além do chão. Eu precisei levantar e ir caminhar no sol respirando o cheiro do verão para perceber que cavar e cavar só vai me levar mais ao fundo. Não se tem notícias de ninguem que tenha cavado e saído no Japão, por exemplo. Peter Pan não chegou na Terra do Nunca atravessando um poço. Peter Parker não enfrentou milhões de vilões choramingando num poço. A única personagem do mundo atual que se deu bem foi a Samara de O Chamado. A única que morreu e saiu do poço para contar a história. E, mesmo assim, não acabou bem.


Percebi hoje, enquanto tremia e vomitava dentro do meu proprio poço e tentava limpar minhas mãos sujas de barro na bainha do shorts, que ninguém mais vai vir me dar bandaids. Eu passei muito tempo sendo curada por outras pessoas. Me acostumei a esperar que alguém pulasse dentro do poço e o tornasse mais bonito. Me acostumei a olhar pra cima implorando por companhia e ser brindada por duas, três, quatro de cada vez. Me acostumei a não curar a mim mesma, mas ser curada por obra do destino. Veja só que irônico, não curou. Somente deu conta de feridas superficiais. Seria muito mais saudável se o ferimento tivesse cicatrizado e sumido para sempre. Não sumiu. Estou há muito tempo nesse poço esperando por ajuda. Mas toda a ajuda foi embora. Agora resta somente eu. Me comunicando com pessoas presas dentro de seus próprios poços. Percebendo que precisamos aprender a sair sozinhas de dentro desse lugar. Não sei como vou fazer isso, mas estou começando a escalar. Os tijolos são escorregadios, minhas mãos não alcaçam alguns. O pé da prótese atrapalha na subida. Os músculos dos braços estão ainda em desenvolvimento. Mas posso ver o sol. Posso ver uma caixa inteira de bandaids e um pote de morfina no meio do caminho. Se for necessário vou injetar algumas doses, apenas para conseguir lidar com a escalada. Mas vou conseguir sair, disse eu a Deus. Mesmo que todos os ateus estejam certos e você não exista, vou conseguir sair. Mesmo que as outras pessoas insistam que estar no poço é mais confortável. Estou muito cansada para continuar esperando ajuda. Quero ver a felicidade pelos meus próprios olhos. Adeus, poço. Foi bom enquanto durou. 

Ontem arranquei uma casquinha dura do meu tornozelo. Sangrou pra caramba, até que secou e se formou outra casquinha em cima. Percebi que não posso lutar contra todas as feridas. Vou precisar dar o tempo necessários para que se curem sozinhas. 

domingo, 16 de novembro de 2014

Psicose

Nunca gostei de limpar a casa. Nunca fui a primeira a levantar a mão na hora que a mãe oferecia uma recompensa pra quem lavasse a louça primeiro. Preferia passar o mês inteiro catando moedas nos bolsos alheios do que ganhar mesada por ser prendada. Então, você deve imaginar como é estranho quando eu me pego com a vontade de limpar a casa num domingo. É nesse momento que eu percebo que tem alguma coisa errada. Pego o esfregão de aço, a esponja e o detergente e resolvo que vou decifrar todos os problemas mais profundos e casca grossa da pia e do fogão. Fico ali, por horas esfregando uma sujeira que há anos não sai do metal. É nesse momento que percebo o quanto me sinto suja por dentro. Cheia de problemas não resolvidos que precisam ser limpados. Mas, diferentemente da louça ou do fogão que a gente pode aplicar toda a força dos músculos do braço pra resolver, não consigo achar solução para os meus problemas. Não consigo ver uma saída para a dor.

Nunca gostei de casquinhas na cicatriz. O processo de cicatrização do meu corpo é muito lento, demorado mesmo. Cria uma casquinha dura, que me incomoda pra caramba. Quando eu tinha cerca de cinco anos, lembro que passava o dia inteiro pulando em árvores ou correndo atrás dos meus gatos e cachorros na rua. Isso me dava milhões de casquinhas. E eu, como inimiga numero um da cicatrização natural, ia lá todos os dias e coçava ao redor. Coçava, coçava até ficar vermelho. E daí a cicatrização já em processo mais maduro, coçava também por dentro. E, cara, como eu odiava ter que esperar a casquinha cair sozinha. "Se tu arrancar, vai ficar com a marca pra sempre", avisava minha mãe. Nunca me importei com marcas pra sempre, desde que eu pudesse arrancar aquela porcaria e me ver livre de casquinhas idiotas. Não mudei muito. Continuo preferindo ver o sangue jorrar a ter que aguardar pacientemente que a casquinha caia pela vontade do universo. E é quando lembro disso que me percebo melhor. Minhas casquinhas da alma não cicatrizaram ainda, mas eu insisto em arrancar todas com as unhas e dentes, preferindo que ardam a ter que esperar que se curem sozinhas.

Não consigo lidar com o tempo direito. Sempre pensei que fosse alguma coisa a ver com a minha ansiedade. Ansiedade comum, ansiedade boa. Com passarinhos no estômago, coração acelerado, vontade de vida. Mas não. Percebo agora, quando estou com as minhas palpitações elevadas e a vontade de morrer aumentado, que talvez eu tenha algum problema mais grave. E não sei como lidar. Não sei como diminuir a sensação de que o mundo gira rápido demais e me encolhe a cada segundo. Não sei como parar de pensar em todos os problemas da minha vida e da vida das outras pessoas. Eu busco por soluções, distrações, maneiras diferentes de lidar com a dor. Nada adianta. Eu tento lidar com os problemas quando faço coisas estúpidas, quando ponho uma lista de objetivos na minha cabeça. E, se de alguma maneira eu não cumprir essa lista, isso me deixa ansiosa também. Me faz sentir pequena e encolhendo, meu peito se fecha, curvado em cima do meu coração. Sinto os pulmões menores, o ar passando com dificuldade, as costelas cada vez mais apertadas. Quase como se minha alma estivesse rebelde, tentando explodir para fora do meu corpo e ir tentar a vida de outra maneira.

Tenho medo. Medo de acabar sozinha e presa em uma camisa de força. Imaginando todas as coisas que eu deveria fazer na minha lista de coisas para fazer antes de morrer. Tenho medo que as palpitações levem embora o sabor da comida ou a beleza do banal. Por que o banal é bonito. A praia é bonita. As coisas tranquilas da vida são bonitas. Eu só não sei disso por que talvez realmente tenha algum problema no meu cérebro. E então tudo vai fazer sentido. Talvez a loucura que tanto me incomode nos outros passe a ter outro timbre quando a minha própria loucura for acalmada. Talvez eu seja a pessoa louca em um mundo de sanidade pré-distribuída em cartelas de lítio. E tudo pelo que eu tenho esperado a minha vida inteira, é uma cartela cheia de soluções para a minha insanidade.


quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Intermission

Eles diziam que seria dificil no começo. Eles diziam que sofrer é a pior parte. Eu descobri que a pior parte é o excesso de tempo para sofrer. E talvez isso tenha alguma conexão com o eterno desejo humano de ser livre. Não é grande coisa. A liberdade tem gosto de cerveja e cheiro de tabaco.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Ocupada

Respiro fundo. Engulo a saudade. Estou ocupada demais para me importar. Ocupada demais para me importar. Você não faz ideia da quantidade de coisas que existem no mundo solitário das pessoas vazias. Oh, wait. Você faz ideia sim. Você sabe tudo sobre como é bom ser solitário e vazio. Tinha me esquecido que a grande devoradora de mundos sou eu. Bem, aqui estou eu. Morrendo de alegria em estar entediada. Não, não entediada. Estou ocupada. Ocupada demais para me importar. Ocupada demais escrevendo, comendo, assistindo todas as séries possíveis. Estou ocupada demais para ficar pensando em sentimentos confusos. Ocupada demais para sentir. Ocupada demais para lembrar. Ocupada demais para chorar. Dei uma folga para o meu pesar. Tirei férias da minha dor. Mudei o treino na academia. Meus braços estão crescendo de uma forma desproporcional. E a bunda também, sem querer ser indiscreta. Dizem que a cidade vibra na noite solteira. Não sei disso, estou ocupada demais fazendo meus músculos crescerem. Vi o pôr-do-sol nascer ontem e quase fiquei emocionada. Quase. Mas estava ocupada demais aprendendo a andar de bicicleta. Hoje eu escutei uns barulhos estranhos na rua. Disseram que um homem matou o outro. Não me importei. Estava ocupada demais escrevendo sobre a violência contra as mulheres. Disseram que a gente tem só uma vida pra viver, que tem que amar como se não houvesse amanhã. Não prestei atenção. Estava ocupada demais para lamentar. Ocupada demais pra pensar sobre o amanhã.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Heaven - The Walkmen

Eu imaginei que o inverno duraria para sempre, desde que meu coração parou de bater no ritmo certo. Desde que o miojo perdeu o gosto e a textura. Desde que os meus lençóis parecem sujos e errados. Meu guarda-chuva amarelo observa tudo ao lado do violão abandonado. Meus gatos não compreendem. Meu colchão é reconfortante, virou a tumba do meu corpo sem ar.
Mas então as flores se abriram. A metamorfose tão difícil entre o congelante e o ameno.

Our children will always hear
The romantic tale of distant years
Our guilty age may come and go

 I crack in dreams that always glow

Eu sei que deveria estar estudando. Eu sei que deveria estar assistindo televisão ou lendo um bom livro ou indo ao cinema ou me divertindo com desconhecidos. Eu sei disso.
Mas a metamorfose é difícil.
Deixar de ser uma coisa para tornar-se outra. Seria cômico se não fosse tão triste. É desesperador, pra falar a verdade. Sentir meu estômago sendo sugado pelo buraco negro que se abriu na minha cama.

Remember, remember
All we fight for


Mas talvez os seriados americanos estejam certos. Talvez a gente precise mesmo aprender muita coisa antes de chegar até onde devemos. Meu guarda chuva amarelo está ansioso para se fazer útil. Os pássaros que ainda não voam na minha clavícula estão rebeldes no meu coração.
A dor retumba nos meus ouvidos, músicas que me lembram de estar viva.
Por que afinal de contas, o verão está chegando.
E nada é melhor do que uma linda primavera para aprender a voar.

Don’t leave me, now
You’re my best friend
All of my life you’ll always be

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Apocalipse Maneiro

Eu achei que quando a gente acabasse, o mundo iria acabar junto. Eu sei, isso é burrice. E sentimentalismo exagerado. E carência. Mas eu realmente achei que quando eu te dissesse tchau, o sol, de alguma maneira, não iria mais querer nascer. Eu achei que quando eu te beijasse pela última vez, as estrelas cairiam do céu e as ruas pegariam fogo. Eu achei que quando eu te dissesse pela ultima vez que eu te amo, as ondas sonoras que se propagam no planeta parariam de fazer efeito e a gente morreria num baque surdo de solidão. Eu cheguei a imaginar o que eu faria quando, de repente, as minhas lágrimas se transformassem em dilúvio e Noé reaparecesse nos chamando pra entrar na arca dele como os únicos representantes da espécie humana para procriar e sermos felizes num mundo novo. Eu achei que quando você cheirasse pela última vez a minha nuca, todos os medos do mundo iriam se arrepiar junto com os pelos do meu pescoço, e de repente as pessoas iriam querer abraçar umas às outras e a guerra no Iraque não faria mais sentido e Jesus desceria do céu, dizendo que, hey, não se assustem, o apocalipse é uma coisa boa. Eu pensei que quando você beijasse meus dedos da mão pela última vez, cada criança com fome no mundo inteiro iria sentir seus estômagos quentinhos, suas vidas melhores, seu corações reconfortados. Eu achei que quando eu arranhasse as suas costas pela última vez, cada criminoso que está morrendo dentro de uma prisão iria sentir seus pecados arraigarem e deixarem de existir e, por um momento, sentiriam inspiração e amor e ternura e iriam querer fazer coisas diferentes e serem pessoas diferentes quando saíssem de lá. Eu imaginava que quando os nossos olhos se cruzassem pela ultima vez, os olhos de todas as mulheres que sofrem em silencio seriam compreendidos e finalmente o planeta giraria para o lado certo e talvez a paz estivesse instaurada entre os sexos. Eu achei que o mundo inteiro sentiria a minha dor quando a gente acabasse. Eu achei que o amor pudesse ser, de alguma maneira, transformado em coisas melhores e não apenas morrer como um animal atropelado no meio de uma rua gelada. Eu achei que a vida poderia ser mais do que isso, que a gente poderia ser mais do que isso. Eu achei que quando a gente finalmente fosse grande o suficiente pra deixar de amar que nem criança, o mundo inteiro se daria conta que é necessário ser adulto e amar uns aos outros com seriedade. Eu achei que quando a gente acabasse, você iria aparecer na minha porta, no meio da noite, encharcado da chuva, pedindo pra gente voltar. Por que o amor não pode acabar. Por que as musicas são lindas. Por que não é possível que isso aconteça. Por que você sente saudade das minhas pernas loucas tirando o cobertor pra fora da cama. Eu achei que quando a gente acabasse eu ia acordar de manhã nos seus braços e suspirar aliviada sentindo o cheiro do seu cabelo.
Eu achei que quando a gente acabasse, a gente não ia acabar.
Mas, olha que triste. A gente acabou.



sexta-feira, 15 de agosto de 2014

O câncer

Acordo com os olhos cansados. Durmo pensando em você. O estômago embrulhado. A dor na alma começa a latejar de novo. É um sinal claro de alerta. É um farol iluminando as águas turvas de uma história que já chegou no ponto final. E eu, que tanto busco por reticências, acabo infeliz e insone. Meus olhos, que se mantém fechados a noite inteira, se abrem nas manhãs frias como se estivessem em chamas. É o choro que não veio. A angústia, a sensação de que meu corpo inteiro vai se curvar e começar a atrofiar também é um sintoma claro de morte retardatária. Nosso amor virou um câncer. Matou minhas células, levou embora a minha felicidade.
Você me olha como se eu fosse a responsável pela longa quimioterapia que é fazer ligações por obrigação, curtir fotos por obrigação, dizer “eu te amo” por obrigação. O que acaba comigo, no final de tudo, é isso que chamam de esperança. Eu acordo, todos os dias, com os olhos doendo e a alma latejando. E, ainda assim, acredito em final feliz. Acredito em mudança, acredito em dias de sol, acredito em cachorros brincando nos parques e na libertação das mulheres.
Acredito que se você luta você consegue. Seria uma pena se eu estivesse acreditando nisso tudo sozinha. É uma droga ter que dar murro em ponto de faca. Sempre me disseram isso. E ainda assim, eu continuei tentando. Bater, de novo e de novo nas mesmas teclas, acabar com a minha carne, expor os meus medos, sonhar com coisas impossíveis. Mas o farol está iluminando o vago caminho da libertação.
O câncer precisa ir embora. Nós estamos fartos de morrer diariamente. Eu estou farta de morrer diariamente, em silencio, achando que tudo vai dar certo. Não vai. E advinha só: Quem vai ter que terminar com isso sou eu.

O que é uma grande pena. É infinitamente mais fácil continuar morrendo quando se tem a ilusão de que está feliz. E infinitamente mais triste também.

domingo, 3 de agosto de 2014

Domingo Sangrento

Domingos tristes, repetitivos, entediantes, merecidos. Domingos que se enchem de loucura insonsa,  que nos deixam sem alegria, nem seriedade. Dias de melancolia, de monotonia, de beleza preguiçosa. Dias de nostalgia, dos teus beijos serem lembrados, das minhas palavras doerem de novo. Dias de malvadeza, de promiscuidade insaciável, de sangue que respinga pelos quatro cantos da casa. O churrasco não feito, o pão queimado, o abraço esquecido em um canto de dia mofado. Rimas que não foram prometidas, ruas que não foram construídas, vidas que não foram nascidas. E as crianças, elas existem por um ato de puro egoísmo, de alegria individualista, em ver uma criatura sofrendo nesse planeta sem rumo, sem amor, sem beleza, sem vida. Vocês, vocês procriam por diversão, pegam o dom divino e transformam em banalidade. Tudo é banal, tudo é efêmero e distante. As coisas que não são planejadas tem um gosto mais doce do que as que foram calculadas previamente. O planejamento da vida tira o gosto de viver com intensidade. A intensidade não rima com monotonia. Domingos sem emoção, sem loucura, sem beijos, sem variedade. Domingos que se passaram, que foram loucos, com beijos, emoção e intensidade. Domingo entendiante. Domingo que se desfaz no cerne da falta de planejamento dos meus dias descompromissados. Domingo triste, longo e solitário.
Sinto saudades. Saudades dos meus domingos que eram agitados. Com você, ali. Com você, aqui.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Romance Platônico

Sou romântica. Meu amor sufoca, minhas mão matam, minha voz é firme, comanda. Sou romântica. Não sei ficar longe, tenho medo de distância, desacredito na verdade, sigo as mentiras que minha paranóia conta. Sou romântica. O amor é uma ilusão, o sexo é uma distração, você é uma imagem projetada pelos meus traumas infantis. Sou romântica. Meu cobertor é frio, meus braços são longos demais, minha solidão cai desapercebida por entre as frestas da monotonia. Sou romântica. Sei que o casamento é uma instituição burguesa criada para controlar a mulher e seu poder de escolha. Sei que a culpa não é das estrelas se eu sou louca e inconstante. Sei que o amor não dura. Sou romântica. Não imagino você em vinte anos segurando minha mão. Não imagino filhos que se chamem de nomes engraçados. Não imagino um amanhã em sépia com nossos olhos brilhando. Sou romântica. Acredito em homem agressivo, homem machista, homem que não teve tempo de virar homem ainda, homem que machuca, que submete, que não liga. Sou romântica. Sou ativista do mundo, quero ajudar os outros a enxergar com olhos mais experientes, quero salvar os animais que são assassinados, quero dar alegria às crianças que sofrem, quero acabar com a vida não sustentável, quero dizer que o amor é uma paródia da nossa simulação de convivência. Sou romântica. Por isso vou acabar sozinha e infeliz. Por isso vou sofrer em Paris. Por isso vou escrever, lutar, amar e nunca ser compreendida. Por isso escrevo esse texto. Por que sou romântica e o romance não é permitido nesse mundo sem esperança.

domingo, 6 de julho de 2014

Onde está o amor?

Seis horas da manhã. O mundo começa a girar, o sol brilha no horizonte, ilumina minha casa pelas frestas sujas. Os carros vem e vão, ônibus fazem barulho, caminhões correm descompromissadamente. Você veste seu uniforme numérico e segue para o abate, para a designação dada em nome da sobrevivência. Os bancos faturam, produzem dinheiro. Você continua em frente, suas ações pré-programadas nas suas cinco horas de sono muito mal dormidas. Somos privilegiados, eles dizem. Somos privilegiados por uma vida cheia de compromissos e batalhas diárias. Uma universidade garantida no currículo, um trabalho com salário garantido no final do mês. Passamos uns pelos outros todos os dias de nossas vidas, não damos importância a isso. Deixemos que se calem, que se matem, que se sumam. O amor foi corrompido pela individualidade suprema. Você não quer me ver, não quer me dar bom dia, não quer ser meu amigo. você não quer saber quais são os meus medos, quais são as minhas batalhas, quais são as minhas alegrias. Você não se pergunta se eu tenho alergia a cebola, se eu gosto de comer língua de boi nos domingos, se eu assisto aos jogos da copa e apito vuvuzelas pelas ruas. Você não quer conhecer minha tatuagem, não quer viajar comigo para a Patagônia, não quer se meter com uma estranha. O amor foi assassinado. Estamos em estado de emergência. Eu não quero fazer amigos, não quero saber se você é de esquerda, não quero parar a minha caminhada apressada para dizer olá. Tem um peso nas nossas costas, um peso morto carregado pelo nosso ombro coletivo. Isso nos impede de ver o pôr-do-sol, de amar sem medo, de ficar de porre numa segunda-feira. você se junta com seus colegas da sociologia para fumar na grama do Parcão, você se junta com seus conhecidos da escola para beber na Padre Chagas, você marca um evento na Casa de Cultura Mário Quintana apenas para lembrar que ainda é criança. Você vai ao parque Tupã, gira de cabeça para baixo para sentir a pressão da morte no cérebro, gira de cabeça para cima para tentar lembrar a alma de como deve ser estar vivo. O amor escorre pelas nossas tentativas de dar adeus. Nós caminhamos por aí, com pressa. Não admiramos as árvores, as ruas bonitas. Não escutamos os batimentos cardíacos dos pássaros, não escrevemos poesias, não tiramos fotos, estamos desacostumados a eternizar o banal. A Idade Média que não tinha internet, nem whatsapp, nem facebook, já está muito ultrapassada com suas pinturas a base de óleo. Você não precisa disso. Você desaprendeu o que é o amor. E você acha que está tudo bem assim.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

A pianista

Meus dedos suados escorriam, trêmulos, pelas teclas do piano. Tentei me concentrar em como minha tia ficaria feliz com a apresentação. Em como as crianças do orfanato seriam beneficiadas com o dinheiro arrecadado pelo espetáculo daquela noite. Fechei meus olhos, imaginei a partitura na minha cabeça. Dó, ré, dó, sol maior. Mas nada disso fazia sentido quando meus olhos se cruzavam com o dele, me fitando de uma maneira nada cortês do outro lado do salão. Tentei ignorar meu coração, que parava de bater a cada piscada. Feche os olhos, concentre-se. A voz na minha cabeça era severa o suficiente para me manter concentrada. Titia sorria na primeira fileira, de braços dados com seu marido barbudo. Eu gostaria de demonstrar calma e decoro. Vã utopia. Joseph me acompanhava com o violino, à esquerda. Percebi que ele sorria para mim, como se fôssemos cúmplices de um mesmo crime. Corei. Estava tão perto de me desmanchar em suor que fiz o maior esforço para me manter distante. Não retribui o sorriso. Fechei os olhos de novo. Faltava pouquíssimo. Apenas mais uma folha da partitura. Apenas mais um minuto. As pessoas pareciam boquiabertas. Senhoras choravam. Arrisquei olhar novamente para ele, o que foi uma péssima ideia. Seus olhos verdes queimavam a minha pele. Ele teve a audácia de levantar o lábio em um sorriso intenso. Parecia o próprio demônio tentando seduzir o meu talento. De alguma maneira, meus dedos se mantiveram no piano, como se já soubessem o caminho de cor. Não conseguia tirar meus olhos dele. Então a música se acabou e eu só me dei conta por que as pessoas começaram a aplaudir e postaram-se de pé, inclusive minha tia que estava inflada de sangue nas bochechas rosadas, parecendo um balão de tanto sorrir. Joseph, de maneira muito educada, postou-se a meu lado e segurou minha mão em frente ao público. Fizemos uma reverência tímida e saímos. Tentei dar uma última olhada no homem da plateia, mas ele havia sumido na multidão. Graças aos céus. Não conseguiria manter a compostura se ele permanecesse me encarando de uma maneira tão perturbadora.

O Brasil e o Segundo Sexo

Vivemos em uma cultura patriarcal, ou seja, uma sociedade onde o homem controla e produz suas próprias regras. A mulher, sendo considerada como parte figurante no processo socioeducativo, raramente tem seus ideais, suas metas e suas concepções levadas em consideração. O machismo tem suas raízes cravadas nos costumes brasileiros desde a época do descobrimento, quando os europeus invadiram nossas terras e trouxeram, junto com a violência, seus costumes cristãos e sua educação já baseada em um sistema de leis compostas pelo patriarcado. Como bem assevera Simone de Beauvoir, a mulher, desde as épocas mais remotas da história da civilização humana, foi considerada um “outro”, um ser ambíguo, diferente da simplicidade masculina, tendo sido, ainda na idade antiga como bem lembrado por Aristóteles, considerada igual aos animais ou aos escravos, alguém que tinha nascido inferior e tinha, como destino, o dever de servir ao homem. De acordo com tal histórico, o Brasil não está livre de tamanho arcaísmo, composto por leis que beiram a hipocrisia. Um país que assevera no artigo 5º da constituição federal o direito a todos os cidadãos de igualdade e equilíbrio. Uma população medrosa e preconceituosa, que busca suas virtudes a partir de uma visão pré-formulada. A população brasileira (se não a mundial) é manipulada pela mídia e tem, na sua base educacional, a divisão desigual de determinados comportamentos entre os gêneros, baseando-se em fórmulas superficiais de controle estatal que beiram o ridículo. A mulher, está sempre no limiar da falsa concepção de liberdade, tendo o “dever” subentendido de ser submissa, comportada, “prendada” e devidamente calada diante de um Estado opressor. O que a pesquisa revela nada mais é que uma constatação obvia, escondida pelas entrelinhas de uma constituição hipócrita.

In Memoriun

Os olhos dela tinham a cor do pôr-do-sol. Talvez quando a morte chegasse não fosse tão triste. Eu poderia manter o sorriso dela nos meus olhos cerrados. Dizem que temos de aproveitar o tempo. Mas o tempo corre o tempo inteiro. No fim somos nós querendo tempo para poder ter mais tempo. E tudo que eu consigo pensar era que ela tinha nuvens nas sobrancelhas. Eu a ouvi cantando e confundi sua voz com as trombetas apocalípticas dos serafins. Seus pés eram tortos. Lembro de quando ela pegou na minha mão e disse que de-veríamos apenas ser felizes. Eu sorri para ela. Eu queria ser feliz também. Mas a felicidade é tão orgulhosa quanto uma mulher difícil: Você tem que correr atrás dela e provar que a merece. Então eu corri. Bom, nós corremos. Ela dizia que os pássaros tinham mais inteli-gência do que todos os nossos professores juntos. Eu concordava. Era embalado por aquela alma que era tão mais velha que a minha. Era desnorteado por aquela menina que tinha a minha idade, mas o coração pesado. Esse talvez tenha sido o meu maior erro. O meu maior desespero. A coisa mais feliz na vida de uma criança é ser aceito. Ela me aceitava. Então eu apenas me fundi nos cachos dourados do cabelo dela e nunca mais me senti sozinho. Éramos inseparáveis, eu e aquela menina. Quando somos crianças, sentimos o cheiro doce do ar, confundimos nuvens com algodão doce, lambemos as gotas amargas da chuva. Crianças olham para a magia, com curiosidade e inocência. Eu a olhava como se estivesse encantado. Aqueles olhos pareciam ondas, me car-regando em passos leves pela maresia. Quando ficamos velhos, voltamos a ser cri-anças, mais enrugadas e mais machucadas. Mas talvez, se eu apenas conseguisse manter o som da risada dela nos meus ouvi-dos doentes, eu poderia dizer que tive uma morte feliz. Não se sabe o que acontece do outro lado. Não se sabe quem vamos encontrar. Mas talvez, quando eu finalmente souber, eu possa dizer que ela foi o anjo que me deu o passe livre para o paraíso. Quando você não tem mais nada no que se agarrar, quando você percebe que simplesmente não pode mais voltar atrás, a vida adquire uma nova tonalidade. Minha existência recebeu essa bruma misteriosa, essa fumaça densa que se espa-lhou pelo passado e me fez enxergar ao amor com novos olhos. Lembrei então do meu primeiro dia na praia. Aquela água azul, tão imensa. Não haviam tijolos, nem muros, nem cercas com arames. A sensação de liberdade que o vento proporciona. A areia macia, tinha a cor da pele dela. A sensação quente nos pés, quase como se a terra nos quisesse puxar de volta para dentro do barro. Lembrei de quando vi a neve cair pela primeira vez. Os floquinhos de gelo caindo no meu nariz. O anjo que fez outro anjo no chão. A menina dizia "Venha, brinque comigo". E eu ia. Tinham então três anjos no chão. O meu, o dela. E ela. O primeiro beijo. Foi dela. O primeiro amor. Ela. Minha mãe era uma senhora gorda e meio carente. Amorosa demais, mas dispersa também. Meu pai era bom com sapatos e sorvetes. Gostava, principalmente, de tomar sorvete na sapataria. Meu primeiro sorvete foi dele. Meu primeiro luto também. Então você fica velho, adquire experiência. A magia não existe. As pessoas vão embora. Os países mudam. As guerras matam. Os casais criam. Você procura por dinheiro como se viver fosse algo renovável. O que é muito triste de se acreditar. Quando você chega na ala terminal do hospital, percebe que passou metade da vida preocupado com besteiras que não fazem diferença. Passou metade da sua existência simplesmente vagando pelo mundo, acreditando que seria alguém "maior" ou "melhor". Gastou metade do seu dinheiro com coisas que não lhe engrandecem, gastou metade da sua energia com pessoas que não sentem absolutamente nada por você. Arrependo-me de muitas coisas, mas ela não está em nenhuma delas. O amor, se não fosse tão incrivelmente maluco, poderia ser a nossa cura. Mas talvez, só talvez, nós não precisemos de amor. Talvez o que a gente precisa seja de mais confiança, mais solidariedade, mais esperança. Dizem que você encontra isso na espiri-tualidade. E isso é algo que fica realmente difícil quando você adquire maturidade o suficiente para entender que as religiões são crenças disseminadas pela ignorância. E então você duvida de Deus. Você passa também a duvidar de si mesmo. Você diz "eu me entrego, eu não quero mais saber de nada". E você apenas nasce para morrer. Essa é a grande verdade da vida. Eu, você, o amor da sua vida, seus filhos, seus pais, seu vizinho corno. Todos nós não temos nenhum propósito na vida além de morrer. Nascemos com o destino lacrado. Saímos de um útero e estamos, irreversivelmente, fadados a ir para o caixão. Por isso viva sua vida de modo que, quando você der o seu último suspiro, quando você fechar os seus olhos pela última vez, quando você tentar acompanhar o terço da sua vó para entreter o medo, tenha algo bom o suficiente para acreditar. Dedi-que-se a alguma coisa, qualquer que seja ela. Beethoven deve ter pensado na sua música. Imaginado os tons que nunca escutou. Da Vinci deve ter imaginado os olhos enigmáticos de sua Monalisa. Madre Thereza deve ter agradecido a Deus por sua maravilhosa existência. Eu só conseguia me lembrar de como as rugas dela lhe caíam tão insuportavelmente bem conforme a idade avançava. Eu não conseguia ver nada além disso. Enquanto as sombras me envolviam e as certezas eram dissolvidas, eu a via. No fim do túnel. Como uma luz, colorida, faíscas que saiam do meu coração. Não sabia se ela tinha uma alma, se seríamos salvos. Nunca toquei nenhum instrumento. Nunca escrevi um livro. Nunca fiz um filho. Mas eu a amei até o fim da sua vida. E foi ela quem eu vi na minha frente, quando as luzes se apagaram. Tenha certeza de ter amado alguém que lhe faça sentir menos monstruoso quando você morrer. Tornará as coisas mais fáceis para você. Tornaram as coisas mais fáceis para mim.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

The Scientist - Coldplay

Por favor, me leve de volta ao início. Por favor, não deixe que se acabe. Eu imploro. A você, a mim, a Deus, ao SUS. Chame uma ambulância, concerte o meu coração. Remova minhas cicatrizes. Eu preciso me erguer, deixar que se reconstruam os meus ossos quebrados. Ele está morrendo. O sentimento, em coma. Suas palavras não fazem muito por mim agora. OS aparelhos estão gritando. Um bip atrás do outro. O batimento cardíaco está instável. A respiração está fraca. Por favor, não deixe que isso se vá. Esteja aqui. Banque o velório. Desculpe por pedir muito, mas acho que o amor precisa de um funeral decente e no momento eu não tenho forças para lidar com isso. Eu estou inerte, não há nada a fazer. Está morrendo, eu sinto. Sua voz, uma anestésico viciado. Não há nada que faça efeito. Seus olhos, um brilho apagado. Suas mãos me arranham, o carinho perdeu o sentido. O amor está morrendo. Por favor, me leve de volta ao início.`Por favor, apague as minhas memórias. Reinvete-se dentro de mim. Mude as suas atitudes, faça novas memórias. Deixe que o amor viva livremente, não permita o coma. Uma auto-indução. Medicamentos. Eu durmo em um torpor de drogas controladas. Meus enjôos servem de bode expiatório. Um anestésico no estômago para que o amor não doa. Por favor, não deixe que se acabe. Você, suas flores. As noites em claro, risadas, música boa. Por favor, me leve de volta ao início. Eu não quero que acabe. Estou numa luta solitária, então por favor, me diga que é recíproco. Eu preciso que você lute comigo. Segure minha mão. Entre no meu quarto, convença-o a ficar. Diga que você está aqui, cante aquela música boba. Diga que você não desistiu. Erga o meu colchão, injete drogas novas. Lute até o final, fique. Não deixe que isso morra. As paredes estão quebrando, tem rachaduras nas veias. Eu não posso me segurar sozinha. Um abismo em frente à minha cama. Os bips não param, embora lentos. Uma parada cardíaca, seus beijos não funcionam. Por favor, lute. Por favor, me leve de volta ao início. Antes que o fim aconteça. Fale sobre o início. Diga que lutamos demais pra que se acabe. Uma injeção de ânimo. Por favor, lute comigo, segure minha mão, me convença a ficar. Conquiste de novo o amor que morre. Você está tão inerte quanto eu. Vamos voltar ao início, refazer as memórias. Vamos começar novamente. Por favor, não morra. Eu não posso deixar que isso morra. Eu não tenho como bancar um funeral sozinha. Por favor, me leve de volta ao início. É uma vergonha que se acabe. Um bip que se expande. Você apenas observa, suas mãos caídas ao lado do corpo. Você apenas observa enquanto o abismo suga nossas memórias. Eu me mantenho inerte. Indiferença.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Despedida

Está chegando a hora de ir embora. Sei disso, mas meus passos continuam imponentes, quase como se vivessem por si próprios. A vida é uma coisa muito engraçada quando você para e pensa sobre ela. Tipo quando você começa a trabalhar em um lugar por muita sorte ou quando você faz amigos que realmente valham a pena por puro azar. Quando você passa a andar pelas ruas mais bonitas da cidade inteira todos os dias e nunca se cansa de admirá-las. Quando a longa escadaria da igreja da Nossa Senhora das Dores passa a ser tão rotineira quanto os paralelepípedos que rondam os prédios históricos do velho serviço militar. Ou tipo quando você desenvolve um talento aguçado para crítico de restaurantes e tem um bloquinho de notas mentais com cada nome anotado com seus devidos prós e contras. Tipo quando você passa a ser praticamente vizinha da usina do gasômetro e visitante assídua do Cais do Porto. Ai, Deus. O Cais do Porto. Sim, a vida pode ser bem engraçada quando você começa a prestar atenção nos pequenos detalhes. O Cais do Porto, palco de algumas das minhas melhores lembranças, simplesmente foi fechado, trancafiado a sete chaves por  um interesse privado em fazer dinheiro em cima dos velhos depósitos de armazéns da historia de Porto Alegre. Uma coisa dessas não deveria acontecer. Simplesmente não deveria. Não parece certo que o dinheiro seja mais importante do que as milhões de memórias guardadas naquele lugar. Assim como também não parece certo que exista uma lenda sobre um negro escravo que ronda a santidade das escadas da igreja, mas é o que acontece. Você sobe três lances enormes de escada só para sentir-se no topo. E daí se lembra que aquela linda rua na frente foi palco de milhares de execuções racistas, originárias da boa e velha dominação de classes do opressor para o oprimido. E mesmo que a historia do lugar inteiro seja um misto de desastre e amor, você continua a nutrir sentimentos por ele, que não são espetacularmente bons mas também não são desastrosamente ruins. Você simplesmente gosta desse lugar. Você gosta de ver pela janela do ônibus as árvores que continuam intactas ali perto do gasômetro. Você gosta de caminhar pelas ruas e sentir a brisa gélida que vem do rio. Você gosta do barulho de soldados gritando e carros diminuindo a marcha e pessoas caminhando. Você gosta de ir a todos os restaurantes e de ter se tornado um perito na qualidade de cada um. Você gosta de ser conhecido pelas ruas, de dar bom dia e ter a segurança de que será respondido, ainda que mentalmente. Você simplesmente gosta, não por que deve ou por que aprendeu, mas por que é assim que funciona o rumo natural das coisas,  aquele costume suave de que tanto se esquecem os amantes depois de casados. É uma paixão amena, quase um assobio, que não deixa você em paz. Desistir dessa convivência diária com o ambiente, as pessoas alheias, o canto dos pássaros aleatórios, os gritos pontuais dos soldados... Dói. Dói de uma maneira quase bonita. Não que eu seja masoquista. Mas a dor é uma saudade alegre que se instalou no meu coração. E olha que eu ainda nem fui embora, mas estou em processo de despedida. Chega uma hora na vida, em que você menos espera, que nutrirá sentimentos inesperados por ocasiões inesperadas. E você vai ter que dizer adeus para tudo isso e saber lidar com a vida, dando continuidade aos sentimentos e ao gigantesco círculo vicioso que são as relações humanas. E vai doer. Mas não vai ser ruim, vai ser bonito. Ir embora de uma situação boa chega a ser gostoso de tão bom. É a alegre dor de se despedir sem estar, de fato, despedido. Você vai partir e deixar uma parte do seu coração ali, influenciando as energias, o canto dos pássaros, movimentando as ondas sonoras dos gritos dos soldados, badalando o sino da igreja às dezoito em ponto. Você vai embora, mas a dor é tão bonita, que você fica.

domingo, 1 de junho de 2014

Never More

As pessoas continuam sendo decepcionantes. Não importa o quanto eu procure, o quanto eu acredite, o quanto eu me importe. As pessoas continuam com as mesmas respostas, os mesmos atos, os mesmos erros. Não importa o bairro, a causa, o sexo, a cor, a classe social. Não importa nada, nenhum rótulo, nenhum preconceito é forte o suficiente para tornar as pessoas melhores. Infelizmente a alma não pode ser comprada, o caráter não pode ser moldado por cirurgiões plásticos, o coração não pode vir importado de algum mundo melhor. A única coisa na qual eu consigo pensar nessa maldita manhã de domingo é sobre quão burra eu consigo ser. Bebi, de novo. Acreditei, de novo. Esperei, de novo. Por que? Por que meu Deus? Pra provar que eu sou como todo mundo? Pra provar pra todo mundo como eu sou? Pra aumentar o peso do meu ego? Pra sufocar a minha baixa auto-estima? E o amor próprio que se foda. E meu sexto sentido que se exploda junto. E a minha percepção sobre o que deve ser feito ou não que desapareça. É isso que as pessoas fazem: Elas se divertem. Eu só não consigo entender por que encaro a arte de ser uma pessoa normal como algo tão complicado. Chega a ser absurdo.
Fazer amigos é difícil. Ser engraçada é difícil. Ser bonita é quase impossível. Ser inteligente é um desafio. Ser aceita, incluída, desejada. Tudo uma questão de luta em cima de luta. Maquiagem certa, roupa certa, fala certa, dose certa, movimento certeiro de quadril. O bom e velho instinto selvagem comandando as modernas relações humanas. A maldade pré-histórica da gente dominando cachoeiras artificiais. É isso. Fazer amigos é a coisa mais difícil do mundo e eu estou me aposentando. Never more. Chega. Meus livros são muito mais fáceis de lidar. Never more. Never more.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

The Funeral

Todas as folhas de outono são douradas, mortas e reluzentes, enfeitam o cinza massivo. E tudo é uma questão de futuro. Você vive da morte, como se fosse o inverno. Você morre nas ruas, rasteja entre os paralelepípedos. Não há esperança. Não há escapatória. Há apenas o nimbo, um portal aberto à sua frente. O amor é um privilégio, o doce veneno que corrompe sua vida. As pessoas constroem pontes invisíveis, laços pequenos que se enozam. E em cada segundo perdido, uma ponte é destruída. A cada minuto batido, você perde a certeza dos dias transcorridos. Não há esperança ou expectativas. Visto minhas luvas pretas, calço minhas botas. O cemitério está lotado de cores. Meu coração não bate, está cru. Se vivemos como mortos, como vamos saber se estamos vivos? O cemitério pode ser apenas um lugar colorido. Sua casa florida, as lojas de cores chamativas, o céu, um grande teto branco. Esse é o grande limite dos cegos. Morrer enquanto ainda estão vivos. Esse é o grande limite da morte, a vida escapando pelos poros, derrubada sob o paralelepípedo. Você precisaria da minha ajuda para entender. Eu precisaria de mim. Os sinos batem, vistam seus casacos. Sinais de luz encobrem o céu. Você veste sua melhor roupa, faz a barba, caminha ereto. A coluna bem alinhada aos pés. Você se move com elegância, quase como se a morte fosse um prêmio de consolação. Não há nada que eu possa dizer. O funeral nunca termina. Você poderia ficar vivo se ainda estivesse morto. Mas as folhas, elas são amarelas. As folhas também estão mortas. Como as pessoas que vivem antes de morrer. Estamos indo a um funeral. Eles chamam isso de felicidade. Você não vê, você não vê. E não há nada que eu possa dizer.

The Kill

Você caminha em passos lentos, digerindo cinzas, mastigando mentiras. Você me entrega seu coração, mas esquece que eu também entreguei o meu. E você pede que eu confie. Você pede que eu deixe você vivo. E há uma lápide. Debaixo de uma árvore, há uma lápide de gesso barato, construida sob vermes. Eu vejo você enterrando o meu coração. Enquanto eu mantenho o seu com o meu sangue. Você enterra o meu coração como se fosse um cadáver. Eu digo então, você sabe o que quer? Não, ele não sabe. E a garoa é companheira da névoa, assim como a traição é companheira da dor. Eu deixo você conectado às minhas veias, eu bombeio sangue, levando oxigênio suficiente para inflar sua alma. Enquanto você me enterra. Seus passos lentos sob o amontoado de terra. Meu corpo soterrado, logo abaixo das suas mentiras. Seu coração está comigo. Apodrecendo.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

(In) Felicidade

Nove horas da noite. Faz frio lá fora. Faz frio aqui dentro. Um livro de direito civil. Dois cadernos incompletos. Uma mente perturbada. Facebook aberto. Pincelo cores nas vidas dos outros. Minha mente divaga, persiste em assistir de camarote a novela da vida  alheia.
Sempre gostei muito de The Sims. Reality shows eram meus programas favoritos na infância. Poder espiar por dentro da fechadura e enxergar o que ninguém enxerga era o grande sonho da minha vida. Sonhava com isso. Rezava por isso. Então Mark Zuckemberg veio, como o gênio da lâmpada mágica e concedeu esse desejo. Deu-me o poder de observar, quieta, o movimento dos outros seres humanos.
Que se danem as minhas provas. Que se danem os meus livros. Que se dane o meu TCC. Eu quero olhar para a vida dos outros e refletir. Fico encantada com a facilidade do pensamento, com a leveza do comportamento humano. A suavidade do absurdo, postado a cada segundo, sugando minha própria energia. Poderia ficar horas apenas observando minhas atualizações. São informações superficiais, mas que me dizem muito, me transformam muito, me preenchem muito.
Se Deus tivesse me dado o poder de olhar de raio X aos cinco anos, com toda a certeza minha imaginação não seria tão próspera: teria sido desgastada em observações intermináveis. Eu queria saber, fervorosamente, o que os meus vizinhos estavam fazendo. Cresci frustrada. Conheci o Big Brother e me senti salva, atendida, amada. Até o dia que eu entendi que os reality shows são controlados, uma forma bonita de manipular a massa. Aprendi que a ignorância é uma benção.
Meu tédio me levou aos livros, aos exercícios de trigonometria, aos textos sobre o futebol na Ucrânia, às pesquisas sobre comunismo e capitalismo e teorias de dominação mundial. Meu tédio fez de mim uma chata mau humorada, sempre insatisfeita, sempre curiosa, sempre infindável. Nada me basta, nada me seduz, nada me sustenta. O conhecimento tornou de mim um saco sem fundo, morto, carregado pelo vento nas ruas lotadas de pessoas mesquinhas.
Essa é a maior mágoa que eu tenho com a vida: As pessoas são felizes. Felizes e mesquinhas.
Minha felicidade assumiu uma cor escura quando eu percebi que não existia. Que não era eu, que não era meu, que não era assim. O mundo é um grande lugar redondo e colorido, mal interpretado, mal solucionado, mal convencido. E quem se importa com isso?
Em pleno século XXI, quando você pode fazer um almoço em quinze minutos no microondas e escrever sem ter calos nos dedos, quem vai se importar com a descoberta da verdade? Quem quer conhecimento? Quem quer indagar, explorar, descobrir, desvendar, quebrar, remendar? Não há tempo. Não há motivação. Meu buraco secreto na fechadura das vidas alheias me diz isso. Elas me dizem isso. As pessoas felizes e mesquinhas. Elas estão felizes com o dinheiro que mal dá pra sustentar o mês. Elas bebem cerveja, saem nos finais de semana, comem carne assada, escovam os dentes três vezes por dia, oram um pai nosso quando se sentem assustadas, compram camisinhas de morango, assistem filmes do Bruce Willis. As pessoas felizes e mesquinhas não tem tempo para o grande egoísmo que é a descoberta solitária de um mundo que não quer ser visto, que não quer existir, que não quer ser mundo.
Minha dor existencial é tão profunda e enraizada, que tenho medo de raízes, tenho medo de profundidades, tenho medo de ser o que deveria. Não me sinto no lugar certo. Não me sinto no momento certo.Não me sinto no corpo certo. Limitações. Limitações por todos os lados. Um corpo frágil. Uma existência pré-ordenada, uma expectativa de vida já prevista. Minha cabeça é enorme, desproporcional, meu cérebro quer fugir.
Meu Deus, por que me abandonastes, se sabias que eu não era Deus, se sabias que eu era fraco?*
Queria ser grande, ser feliz e preenchida. Não sou. Queria ser feliz e mesquinha. Mesquinha e egoísta. Egoísta e ignorante. A ignorância é uma benção, uma salvação, um bálsamo líquido. É o que faz com que o mundo continue sendo mundo depois de ter deixado de ser. É o que embala as canções bregas, os dias mornos, a economia assassina. Essa é a minha maior mágoa, com você, vida. Ter feito de mim, um erro da natureza. Um aborto de Gaia. Não me encaixo nesse planeta, não me sinto dentro de mim. Estou sempre além, aquém, também. Estou sempre querendo estar não estando. Meto histórias na minha cabeça, invento personagens, escuto música, bebo alcool. É uma fuga infinita da minha própria perseguição.
Sou eu seguindo meu próprio rabo, de novo e de novo, sem parar, para sempre.
Enquanto as pessoas são felizes e mesquinhas. Coçam os testículos, mastigam de boca aberta, tomam banho em pé e deixam a salada apenas pra quando se sentirem gordas. As pessoas comemoram o trabalho medíocre, o dinheiro escasso, a comida ruim. Não querem dominar o mundo, não querem ser o mundo, não tentam desvendar a alma como se a alma fosse um corpo, não querem desvendar um corpo que esconde uma alma. Muitas vezes, nem querem uma alma.
Sinto inveja e mágoa.
Felicidade, quem és tu, que me foge de perspectiva?
Quem és tu, que me manteve indigna, distante, impossível?
Darwin teria as respostas. Sou um erro da natureza. Um cuspe sugado por esse planeta errôneo. Deveria estar flutuando em meio à poeira cósmica, deixando de ser eu, tornando-me um todo. Talvez assim estivesse no lugar certo. Talvez assim o planeta estivesse em equilíbrio. Talvez, só talvez, então, eu poderia ser feliz. Feliz e mesquinha.



quinta-feira, 24 de abril de 2014

Boa Noite

Quase me esqueço de quem sou. Ando por essas ruas iguais, ando com essas roupas iguais, mas sou diferente. Sou diferente de mim. Leio meus textos antigos e me vejo de outro ângulo. Não sou mais a menina desesperada. Não sou mais a menina traumatizada, triste, sombria, fechada, tímida, pacata. Criei força do nada. Aprendi a ignorar a queda. É assim, não é? Quando a gente percebe que amadureceu. Sinto saudade dela, aquela menina triste. Saudade dos textos bonitos, da dor latejante. O que pode parecer bem doentio, se você for parar pra pensar, mas é verdade. Mudei. Finalmente aprendi a converter toda a minha dor existencial em algo produtivo que não fosse, necessariamente, textos esquecidos em um blog. Minha raiva se dissipou nos aparelhos complexos da academia. Minha ansiedade se dissipou nos dias curtos com minutos longos que não me deixavam espaços nem vírgulas que pudessem ser lamentados. Minha solidão fez as pazes comigo: Somos amigas, quase não nos separamos. Minha vontade de tirar a vida das pessoas babacas simplesmente se acalmou. Estou quase tranquila, se não fosse tão perturbada. Minha alma está desacostumada a ser descrita. Quase não lembro de como fazia para escrever. Então, eis que faço: Escrevo. De novo, de novo, de novo. Agora e sempre. Meu único trunfo, minha fuga, meu amor. Se meus dedos falassem, eles protestariam contra o meu cérebro preguiçoso. Volta pra vida, Sara. Escrevo. Boa noite.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

L'Amour

O amor virou algo tão comum que qualquer um pode simplesmente sentar e es-crever sobre ele. Como se fosse um assunto banal, recheado de clichês e senso comum. Acho que, na verdade, o amor é um grande mistério. Por exemplo, você pode até saber que sente amor, mas não consegue descrevê-lo. É invisível como o ar que você respira. Essencial como a água que você bebe. Mas menos físico, menos sensitivo. É quase como a dor, um estímulo enviado pelo cérebro. Essa é a coisa mais triste que eu tenho para dizer a você: O amor é um estímulo enviado pelo cérebro. Talvez uma enganação. Não sei, sou leiga nesses assuntos de cérebros, estímulos nervosos e sentimentos. Não sei explicar direito, mas nossos sentimentos não são palpáveis. Não é algo que você possa escolher ou segurar ou vender ou manipular. Nossos sentimentos são como Deus. Alguns acreditam, outros não. Mas para os que tem fé, não importa a sua crença, ele está lá. Como a lei da atração, a lei da gravidade, a lei da Maria da Penha. Você não pode vê-la, mas ela será aplicada. Eu também tenho uma visão otimista sobre o assunto, ok? O amor, você sentindo ou não, estará lá. Você acreditando ou não, assumindo ou não. Seja por uma pessoa, por um animal, por uma lembrança, por uma crença. O amor é o sentimento mais belo e forte do mundo, já diziam os contos de fadas. É invisível e inquestionável. Impossível e inimaginável. Requerido e o sentenciado. O amor é o culpado e o inocente. O motivo e a escapatória. A dor e o alívio. É fogo que arde sem se ver, já diria o imortal Mário Quintana. Meu primeiro amor nasceu há alguns tantos anos atrás, quando eu ainda nem sabia resolver equações. Não que eu saiba resolver equações agora, mas naquela época eu não fazia ideia do que se tratava. Não que eu faça ideia do que se trata agora, mas enfim. Meu primeiro amor foi pelo menino mais estranho da escola. Eu tinha seis anos, ele sete. Ele brincava de pegar comigo (com a desculpa do trocadilho) e eu brincava de esconder com ele. Um dia, ele me beijou no rosto. Eu nunca mais esqueci. Eu não sei direito se isso é amor, se isso foi amor, se isso continua amor. EU sei que senti alguma coisa, um soco no estômago, um esquentar de bochechas. Nunca mais falei com ele. O amor assusta. Meus amores seguintes não foram muito diferentes. Sem beijos. Existiam apenas na minha cabeça. Existiam apenas a metros de distancia de mim. O amor era assustador demais para ser tocado. O platônico parecia mais bonito. Meu primeiro beijo foi lindo, na minha cabeça. Eu os amava. Perdidamente. Incontrolavelmente. Terrivelmente. Insanamente. Ingenuamente. Mas não era amor. Era paixão. Essa coisinha boba que faz a gente tremer e se es-conder. Amor assusta, mas é mais leve, mais manso, mais discreto. Sei disso por que o amor, o amor de verdade, apareceu de forma quieta, se instalou dentro de mim e nunca mais saiu. Primeiro veio a paixão. Fez todo o estrago que só ela sabe fazer. Todo o vendaval de emoções descontro-ladas. E então, junto com o meu primeiro beijo, veio o amor. Depois de ter me revirado de cabeça para baixo, tapado meus olhos, amarrado minhas pernas, abatido meus pensamentos. Depois de ter me tirado as tripas para fora e colocado de novo, chegou o amor. Como uma ambulância sem sirenes. Pronto para me salvar e me enviar para uma nova fase dessa vida real, com retri-buições e caras que existem. Chegou o amor. E o amor é um cara chato, que não sai do meu pé. Fica aqui, o dia inteiro. Preso no meu coração. Gritando nos meus ouvidos. Apertando o meu estômago. Enchendo minha garganta de borboletas. Colocando um sorriso no rosto, um peso na alma, um choro escondido nos medos do futuro. O amor chegou de braços abertos, mesmo sabendo que eu não estava preparada. Por que a verdade, é que o amor sabe quando você está preparada antes de você saber. Eu enganchei minhas pernas, subi no colo dele e nunca mais saí. O que é meio preocupante, quando se é uma feminista praticante e se tem um princípio de vida de se manter independente. O amor vicia. É uma droga da boa, te faz engordar, te faz emagrecer, puxa os teus cabelos, sussurra no seu ouvido, dá tremeliques na sua bexiga, escorre pelas suas partes intimas. O amor não é bonito e cheiroso. Fede a desejo de homem, tem gosto de batom de morango estragado. É morno sem ser sonso. É borbulhante sem ser exagerado. É colorido, mesmo quando se mantém em preto e branco. É sépia, mesmo com os filtros desligados. O amor não tem cara, não tem coração é como uma doença que se instala dentro da gente e não sai nunca mais. Permanece ali, como quem não quer nada, consumindo sua energia, manipulando suas ações, alegrando seus pensamentos, adoecendo as suas doenças. O amor pode curar quando é retribuído. Pode matar quando é ignorado. Amor sem amor não sobrevive. A indiferença é o oposto. O ódio é a energia. Você não pode fugir, não pode se esconder. Você pode fechar os olhos e fingir que não sabe, mas ele está lá. Quando dói e quando cura. Quando sorri e quando chora. O amor é uma parasita que se alimenta do seu sangue, consome sua energia, ali-menta sua alma. Você se sente atropelado por um vagão de trem europeu e ainda assim quer mais. Você se sente voando acima das nuvens e ainda assim não é o suficiente. É uma energia renovável, como a luz solar. Não se sabe da onde, não se sabe por quem. É quase como um encosto que fica do seu lado. Só que dentro de você. O amor é uma possessão que nenhum exorcista vai conseguir tirar. Parece até coisa que Deus criou para mostrar sua grandiosidade. Para os céticos, parece até coisa que se criou depois do big bang para que os hu-manos pudessem ser mais fortes. Darwin não previu isso. Uma auto sabotagem de nós mesmos. Mais de mil anos de evolução e quase todas as doenças tem cura. Menos o câncer, a aids e o amor. Amor não tem remédio, não tem reza, não tem simpatia, não tem injeção ou vacina certeira. Não tem estaca de prata, nem veneno contado, nem anticoncepcional, nem mágoa maior que acabe. O amor é independente. Começo a pensar que não sou eu quem amo. É o amor que humana.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Olá, mundo

Quando eu tinha uns doze ou treze anos, lembro de odiar minha vida. Odiava minha casa, meu corpo, meu país, meu computador, meu quarto, meus cabelos, minha bunda. Odiava minha rotina de ócio interminável, minha mania de querer ter sempre mais. Desenvolvi uma teoria de que o universo inteiro conspirava contra a minha felicidade, quase como um sistema cármico hindu que tendia a me foder no sentido mais espetacular da palavra. Exageros hormonais à parte, eu estava certa. O mundo conspira contra você quando você acredita nisso. Que vão para o inferno as comprovações científicas dos céticos mau humorados que zombam da sábia lei da atração. Danem-se os milênios de matemática e lógica e frieza estampadas nos li-vros de ciências da modernidade. Você tem o que você pede. Certo? Certo. Por isso cá estou eu, aos vinte anos de idade, conseguindo ser tão monótona e en-tediante quanto aos doze. Não odeio tanto assim a minha vida. Não odeio tanto assim o meu cabelo. E, honestamente, aprendi a conviver em paz com a minha bunda. Estabeleci um acordo de trégua mútua entre mim e o universo. Nada de tragédias catastróficas por agora. Nada de conquistas grandiosas. Eu emiti para o mundo que queria dar um tempo para me recuperar do ultimo baque e foi exata-mente isso que eu recebi de volta: o tempo. Assim, enquanto a minha fossa vai embora por métodos alternativos, o resto do planeta parece avançar mil anos luz e ainda assim continuar parado. Porto Alegre esquenta, Nova Iorque esfria. Os ônibus param, o trânsito segue, os homens são esquartejados, as mulheres mostram os peitos na Ucrânia. Adolescen-tes morrem em festas universitárias, cachorros morrem em laboratórios, velhos renascem no caixão fechado a sete palmos do chão. Relacionamentos terminam, traições começam, homossexuais casam. A cada dois passos, um retroage. A cada minuto, uma volta pra frente, uma rotação transversal. Nossos minutos são conta-dos em tiques de moedas. O relógio não faz mais tique-taque. O sistema capitalista prospera, o neo-liberalismo ameaça a paz dos sonhadores. O comunismo vira dita-dura, Dilma não fala sobre aborto, mulheres morrem em clínicas clandestinas, a França vem jogar na copa das federações no Brasil. E eu? Fiz uma tatuagem semana passada, cravei na nuca o símbolo russo da batalha. Sou quase uma caçadora de vampiros criada por Richelle Mead, não fosse minha falha em permanecer sendo uma pessoa de carne e osso. Comecei a fazer academia e usar expressões novas como “malhar”, “treino”, “série” e “frutas suculentas”. Fiz algu-mas cirurgias. Ultrapassei a barreira dos doze meses em um relacionamento sério com o primeiro homem que, mesmo quando sente uma vontade gigantesca de fugir de mim, permanece. Derrubei garrafas de vinho, garrafas de Smirnoff, garrafas de Tequila, garrafas de acetona. Vomitei meus sentimentos claustrofóbicos na privada dos pubs da cidade baixa. Diziam que era culpa da gastrite, então comecei a tomar dois comprimidos de omeprazol por dia, pra ver se consigo manter no estômago a minha ansiedade por devorar o mundo. Não funcionou. Os enjôos ainda me abatem, as manhãs ainda são quentes, o pla-neta ainda gira ao contrário, as calotas polares derretem, os cães americanos con-gelam. Meu coração é bipolar, meus olhos tem labirintite. Os dias caem nos meus ombros como uma doença, um peso morto que eu carrego pelas ruas. Não que eu esteja infeliz, só preciso de um tempo. Enquanto a minha covardia não amadurece e vira borboleta. Olá, mundo. Essa sou eu mandando você foder a si mesmo.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Que

E eu, que faço? E eu, que leio? E eu, que espero? E eu, que morro? Eu que sou egoísta. Eu que sou exagerada. Eu que sou extensa. Eu que me escondo em palavras. E tu, que fizestes? E tu, que acreditas? E tu, que esperas? E tu, que excitas? Somos insignificantes. Somos intoleráveis. Quase amantes. Quase intocáves.

Começo do Fim

Taí. Simples e direto. Nosso fim. Ou o começo de um fim que precisa existir para que se faça um novo começo. Não que eu espere que você volte, por que você não vai. Mas eu vou esperar. Eu sempre espero. Esse talvez seja o grande problema de quem ainda tem um pingo de diginidade no coração: Amar para sempre. Não sei apagar, riscar, esquecer, jogar fora. Coleciono amores impossíveis, amores doloridos, amores acabados, amores quase começados. As possibilidades escorrem pelos meus dedos, não vejo saída. Vejo ambulâncias e viaturas. I think we have an emergency. Você está ocupado demais com o nosso futuro para perceber que o presente está em ruínas. Eu estou preocupada demais com o nosso presente para conseguir construir um futuro. Simples e direto. Taí. O nosso fim.