Os táxis
andam rápido pelas ruas. Semáforos apitam, no estrondoso movimento da massa
populacional. Estrelas faíscam lá no céu, ignoradas pela grande rapidez dos
dias. Eu continuo em frente, com ou sem você. As garrafas de cerveja estão
empilhadas nas ruas cobertas de podridão. Nós nos perguntamos o que fazer com o
tempo extra de sofrimento. Não há muita coisa a se fazer, na verdade. Apenas
continuamos em frente, por que é assim que eles dizem que devemos fazer. Você
não pode voltar atrás depois de já ter seguido por uma certa trilha. O caminho
se desfaz e a volta é impossível. Mas está tudo bem, eu posso viver com ou sem
você. Não estou sozinha, não como deveria estar. A água profunda dos dias foi
domada. Estou boiando na superfície. Posso respirar agora. Você não vê? É
extremamente mais fácil boiar na superfície. Finalmente compreendo todas as
grandes babaquices cometidas por pessoas vazias. A covardia está estampada em
cada rosto bonito. Boiamos juntos na superfície. Aprendemos a boiar depois de
nos afogarmos na profundidade das águas turvas dos dias. É nosso mecanismo de
defesa mais poderoso. Nossa forma de virar as costas para o mundo que nos
engoliu. Sinto a profundidade lá embaixo. Observo de longe pessoas mergulhando
juntas. Agora posso até sentir certa admiração pelo amor alheio. Mas prefiro
boiar, por que não sei nadar. Não sei se algum dia vou aprender a nadar o
suficiente para sobreviver a isso. Sei que aprendi a boiar, na imensa solidão
da minha covardia. Eles mergulham de mãos dadas. Nos observam com compaixão,
dispersos acima do planeta cheio de alegria e equilíbrio. Eu observei demais
quando estava lá embaixo. Eu coloquei minha cabeça para fora da água milhões de
vezes, desejando estar na superfície. Não pensei que se realizaria tão cedo.
Existe uma certa compaixão entre as pessoas vazias. Estamos todos fadados ao
mesmo destino incerto da correnteza. Nos deixamos levar sem nunca entrarmos um
centímetro sequer. Está tudo bem. Posso viver com ou sem você. Estou na jogada.
Estou de volta. Mal posso esperar para boiar em outros lados. Apenas seguimos
em frente, por que é isso que nos ensinam a fazer. Você precisa continuar e
você aprende a lidar com isso. A superfície é um lugar maravilhoso, não quero
mergulhar nunca mais. Escrevo esse texto debaixo d'água, por que a superfície
não me permite pensar sobre essas coisas. Minha cota de ar está acabando. Vejo
sombras se aproximando para me ajudar. Não posso mais ficar aqui. Saiba apenas
que não importa a imensidão da coragem, nunca será o suficiente para
aprendermos a respirar sozinhos. A superfície me espera. Preciso ir. A notícia boa é que posso
respirar com ou sem você.
Adorável Infortúnio
Vida, desacasos, infortúnios, perguntas, eu, você e quem mais quiser.
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quarta-feira, 17 de dezembro de 2014
sexta-feira, 28 de novembro de 2014
As Vantagens de Ser Invisível
Existem
momentos na vida. Momentos em que podemos jurar que o infinito realmente existe
e está dentro de nós. Hoje eu tive um desses momentos. Depois de tanto tempo
sofrendo por não me sentir mais como um ser humano normal, eis que finalmente
eu tive um momento de emoção completa. Você não tem muitas opções quando seu
momento chega. Você só pode se entregar, ou segurar a emoção até que exploda em
outro momento. Mas enquanto eu estava sentada no carro, entre a minha irmã e a
minha mãe, escutando a conversa do meu irmão com a amiga dele nos bancos da
frente e a brisa do mar entrando pela janela, só consegui sentir aquilo. Aquele
sentimento de tristeza infinita. Quase como se, de repente, tudo estivesse
desmoronando na frente dos meus olhos. E eu senti tanto amor e tanta dor ao
mesmo tempo, que não pude segurar. A dor transbordou pelos meus olhos, meu corpo
dava espasmos desesperados. Eu tentei ser discreta, mas meu nariz simplesmente
não consegue funcionar direito quando o choro vem, então qualquer um percebe as
fungadas silenciosas. Eu percebi que poderia estar com problemas psicológicos
enquanto chorava dentro do carro numa manhã comum de novembro. Eu percebi que a
vida tem sido muito má ultimamente e tem acontecido muitas coisas ruins. E as
pessoas tem sido cruéis e os acontecimentos tem acabado com a minha esperança.
E então meu aniversário tem sido uma festança infinita desde ontem. O bolo e os
salgados continuam aparecendo na minha frente, surgindo em todas oportunidades.
Os presentes são maravilhosos. Você não me felicitou, mas veja que engraçado,
tem um cara que eu não conheço que veio no seu lugar. E isso realmente me pegou
desprevenida, por que eu não sou o tipo de garota que chama a atenção de caras
desconhecidos. E então também tem esse livro maravilhoso que fala sobre os
traumas de tantas pessoas sob a perspectiva de um cara com problemas em lidar
com a vida social. E esse livro que eu li em apenas um dia, enquanto minhas
emoções afloravam, traduziu com muita perfeição o quanto a vida é dificil de
ser levada. Exceto quando alguma grande entidade do universo resolve que
finalmente chegou a sua hora de ser presenteada e o planeta começa a girar pro
lugar certo e você sente que foi escolhida pra ser feliz. Eu não pensei que
fosse dizer isso tão cedo, mas estou feliz. Absurdamente. O mais assustador é
que isso não tem nada a ver com homens ou namoros ou amores ou paixões. Eu
estou puramente feliz. Feliz pelas conquistas, feliz por que minha mãe me
abraçou hoje enquanto eu chorava na praia depois de conseguir pisar pela
primeira vez em tanto tempo dentro da agua sem que ninguem precisasse me
segurar. Feliz por que meu irmão parecia ter voltado no tempo e esquecido a
guerra travada entre eu e ele nos utimos anos, desde que comecei a pintar o
cabelo, fazer tatuagens ou não estudar para as provas. Feliz por que o dia
estava ensolarado e o calor poderia estar insuportável para todas as outras
pessoas em casa ou no trabalho numa sexta-feira comum, mas para mim estava
ótimo. Feliz por que eu finalmente declarei trégua ao sol e nós nos demos tão
bem que eu até exagerei na dose e agora preciso disfarçar a vermelhidão dos
meus ombros queimados. E esse momento, o momento em que me senti infinita, foi
suficiente para tirar de mim todo o mal dentro do meu coração, o peso que tem
me atirado pra baixo por tanto tempo. Essas coisas são estranhas. Charlie
estava tremendamente certo quando descrevia a dificuldade que temos em lidar
com as outras pessoas. Uma das vantagens de ser invisível é que você consegue
perceber muito em pouco, a capacidade de interpretação corporal fica muito mais
afiada. Então eu posso dizer que a felicidade foi mútua quando minha família me
viu abrir os braços abaixo do sol de trinta graus e deixar que as ondas me
empurrassem em direção à beira do mar. E eu posso dizer que esse foi um dos
momentos mais incríveis que eu jamais pensei que teria. Por que, se você quer
saber, ainda estou emocionada. Não somente pelo sol, ou pelo sorriso da minha
mãe, ou pela anacronia do meu irmão ou pela emoção da minha irmã. Mas também
por que eu finalmente parei de me importar com tantas coisas e decidi isso há
apenas alguns dias atrás. Quando eu disse ao universo que não me importava com
ele, desde que ele fizesse as coisas certas, as coisas certas começaram a
acontecer por si próprias. E agora eu sinto que não preciso mais beber para
amortecer a dor ou fumar para esconder o choro atrás da fumaça. Eu sinto que
esse amor dentro de mim precisa ser demonstrado. E sinto um êxtase anormal por
também ter revolucionado a história do meu rendimento acadêmico. É como se,
pela primeira vez em muitíssimo tempo, ser a pessoa que eu sou fosse a coisa
correta a se fazer. Não que eu tenha muita escolha, mas posso dizer que estou
feliz em ser quem sou. E isso também me dá vontade de chorar, mas acho que
minhas emoções estão fragilizadas graças ao sol e ao sal e ao sorriso da minha
mãe. E também tenha alguma coisa a ver com os pastéis e as empadas e o bolo
surpresa que é o meu preferido e todo mundo resolveu comprar pra mim. Só espero
que esse momento seja eterno na grande imensidão de momentos efêmeros.. E que
eu consiga, ao menos mais alguma vez na vida, me sentir infinita.
segunda-feira, 24 de novembro de 2014
Epifania Monocromática
Eu cansei
de cavar o poço. Cansei de sofrer e continuar procurando mais sofrimento. O
alcool e o tabaco são distrações, formas mais simples de lidar com a dor. Mas
eu estou simplesmente tão cansada de tentar lidar com isso. Com a vontade de me
jogar de um precipício e sair nadando em direção ao nada. Estou tão cansada de
sentir a alma latejar. Eu andei procurando por maneiras mais baratas de lidar
com esse sentimento de impotência. Não encontrei muitas saídas. Tudo que eu encontrei
foram mais motivos pra continuar lutando. Não é possível que a vida se resuma a
isso. Que a morte do amor seja maior do que a minha vontade de desbravar o
mundo. Não posso aceitar morrer assim. Dei por conta disso hoje, quando acordei
depois de 12 horas em coma de ressaca e coloquei todo o meu estômago pra fora
em um líquido viscoso e amargo. Algo que eu gosto de chamar de o vômito da dor. O vômito da dor me fez perceber que eu ainda não morreria, só precisava expelir
de mim tudo que me fazia mal. Depois de ver o mundo girando por um dia e meio,
nada como colocar todos os resquícios de sentimentos ruins para fora. Então
percebi. Percebi que não queria morrer. Por que, acredite, eu pensei que fosse.
Hoje, lá pelas 6 horas da manhã, quando me dopei de dramin rezando para que o
enjôo passasse depois de uma noite inteira sonhando com coisas malucas. Meu
corpo inteiro vibrava, sentia minha cabeça despencando. Quase morri.
Percebi que
estava desejando agulhas com soro nas minhas veias, um hospital com cheiro de
morfina e um enfermeiro que seria doce na medida certa, com suas roupas brancas
sorrindo para mim enquanto eu fechasse meus olhos e fosse para um mundo sem
dor. Percebi que quase estava morrendo. Meu esôfago queimava. Senti o estômago
dar pulos. Comecei a conversar com Deus. Pedi desculpas por ser rebelde. Depois
implorei por misericórdia. Por favor, Deus, não me deixe morrer. Por favor,
Deus, me ajude a vomitar. Por favor, Deus, eu juro que não beberei até 2015. E
assim foi. O estômago recobrou as forças e conseguiu expelir de mim o alcool
acumulado com o bolo de chocolate que não me fez bem. As doze horas de coma
silencioso saíram de dentro de mim. Sobrou a vontade, a ansiedade, a monotonia
dos dias ganhos. Sobrou uma vida com expectativa de sessenta anos e meio de dor
e alegria. Não estou preparada para morrer, disse eu a Deus. Não estou preparada
para largar tudo e me acovardar no mundo dos mortos, disse eu a Deus. Não vou
beber mais, disse eu a Deus. E assim será feito. Até que Deus seja esquecido
novamente e venha cobrar minhas promessas diretamente nos portões do inferno.
Até que eu perceba que o poço sem fim dos meus dias não irá me levar a lugar
algum além do chão. Eu precisei levantar e ir caminhar no sol respirando o
cheiro do verão para perceber que cavar e cavar só vai me levar mais ao fundo.
Não se tem notícias de ninguem que tenha cavado e saído no Japão, por exemplo.
Peter Pan não chegou na Terra do Nunca atravessando um poço. Peter Parker não
enfrentou milhões de vilões choramingando num poço. A única personagem do mundo
atual que se deu bem foi a Samara de O Chamado. A única que morreu e saiu do
poço para contar a história. E, mesmo assim, não acabou bem.
Percebi
hoje, enquanto tremia e vomitava dentro do meu proprio poço e tentava limpar
minhas mãos sujas de barro na bainha do shorts, que ninguém mais vai vir me dar
bandaids. Eu passei muito tempo sendo curada por outras pessoas. Me acostumei a
esperar que alguém pulasse dentro do poço e o tornasse mais bonito. Me
acostumei a olhar pra cima implorando por companhia e ser brindada por duas,
três, quatro de cada vez. Me acostumei a não curar a mim mesma, mas ser curada
por obra do destino. Veja só que irônico, não curou. Somente deu conta de
feridas superficiais. Seria muito mais saudável se o ferimento tivesse
cicatrizado e sumido para sempre. Não sumiu. Estou há muito tempo nesse poço
esperando por ajuda. Mas toda a ajuda foi embora. Agora resta somente eu. Me
comunicando com pessoas presas dentro de seus próprios poços. Percebendo que
precisamos aprender a sair sozinhas de dentro desse lugar. Não sei como vou
fazer isso, mas estou começando a escalar. Os tijolos são escorregadios, minhas
mãos não alcaçam alguns. O pé da prótese atrapalha na subida. Os músculos dos
braços estão ainda em desenvolvimento. Mas posso ver o sol. Posso ver uma caixa
inteira de bandaids e um pote de morfina no meio do caminho. Se for necessário
vou injetar algumas doses, apenas para conseguir lidar com a escalada. Mas vou
conseguir sair, disse eu a Deus. Mesmo que todos os ateus estejam certos e você
não exista, vou conseguir sair. Mesmo que as outras pessoas insistam que estar
no poço é mais confortável. Estou muito cansada para continuar esperando ajuda.
Quero ver a felicidade pelos meus próprios olhos. Adeus, poço. Foi bom enquanto
durou.
Ontem arranquei uma casquinha dura do meu tornozelo. Sangrou pra caramba, até que secou e se formou outra casquinha em cima. Percebi que não posso lutar contra todas as feridas. Vou precisar dar o tempo necessários para que se curem sozinhas.
domingo, 16 de novembro de 2014
Psicose
Nunca
gostei de limpar a casa. Nunca fui a primeira a levantar a mão na hora que a mãe
oferecia uma recompensa pra quem lavasse a louça primeiro. Preferia passar o
mês inteiro catando moedas nos bolsos alheios do que ganhar mesada por ser
prendada. Então, você deve imaginar como é estranho quando eu me pego com a
vontade de limpar a casa num domingo. É nesse momento que eu percebo que tem
alguma coisa errada. Pego o esfregão de aço, a esponja e o detergente e resolvo
que vou decifrar todos os problemas mais profundos e casca grossa da pia e do
fogão. Fico ali, por horas esfregando uma sujeira que há anos não sai do metal.
É nesse momento que percebo o quanto me sinto suja por dentro. Cheia de
problemas não resolvidos que precisam ser limpados. Mas, diferentemente da
louça ou do fogão que a gente pode aplicar toda a força dos músculos do braço
pra resolver, não consigo achar solução para os meus problemas. Não consigo ver
uma saída para a dor.
Nunca
gostei de casquinhas na cicatriz. O processo de cicatrização do meu corpo é
muito lento, demorado mesmo. Cria uma casquinha dura, que me incomoda pra
caramba. Quando eu tinha cerca de cinco anos, lembro que passava o dia inteiro
pulando em árvores ou correndo atrás dos meus gatos e cachorros na rua. Isso me
dava milhões de casquinhas. E eu, como inimiga numero um da cicatrização natural,
ia lá todos os dias e coçava ao redor. Coçava, coçava até ficar vermelho. E daí
a cicatrização já em processo mais maduro, coçava também por dentro. E, cara,
como eu odiava ter que esperar a casquinha cair sozinha. "Se tu arrancar,
vai ficar com a marca pra sempre", avisava minha mãe. Nunca me importei
com marcas pra sempre, desde que eu pudesse arrancar aquela porcaria e me ver
livre de casquinhas idiotas. Não mudei muito. Continuo preferindo ver o sangue
jorrar a ter que aguardar pacientemente que a casquinha caia pela vontade do
universo. E é quando lembro disso que me percebo melhor. Minhas casquinhas da
alma não cicatrizaram ainda, mas eu insisto em arrancar todas com as unhas e
dentes, preferindo que ardam a ter que esperar que se curem sozinhas.
Não consigo
lidar com o tempo direito. Sempre pensei que fosse alguma coisa a ver com a
minha ansiedade. Ansiedade comum, ansiedade boa. Com passarinhos no estômago,
coração acelerado, vontade de vida. Mas não. Percebo agora, quando estou com as
minhas palpitações elevadas e a vontade de morrer aumentado, que talvez eu
tenha algum problema mais grave. E não sei como lidar. Não sei como diminuir a
sensação de que o mundo gira rápido demais e me encolhe a cada segundo. Não sei
como parar de pensar em todos os problemas da minha vida e da vida das outras
pessoas. Eu busco por soluções, distrações, maneiras diferentes de lidar com a
dor. Nada adianta. Eu tento lidar com os problemas quando faço coisas
estúpidas, quando ponho uma lista de objetivos na minha cabeça. E, se de alguma
maneira eu não cumprir essa lista, isso me deixa ansiosa também. Me faz sentir
pequena e encolhendo, meu peito se fecha, curvado em cima do meu coração. Sinto
os pulmões menores, o ar passando com dificuldade, as costelas cada vez mais
apertadas. Quase como se minha alma estivesse rebelde, tentando explodir para
fora do meu corpo e ir tentar a vida de outra maneira.
Tenho medo.
Medo de acabar sozinha e presa em uma camisa de força. Imaginando todas as
coisas que eu deveria fazer na minha lista de coisas para fazer antes de
morrer. Tenho medo que as palpitações levem embora o sabor da comida ou a
beleza do banal. Por que o banal é bonito. A praia é bonita. As coisas
tranquilas da vida são bonitas. Eu só não sei disso por que talvez realmente
tenha algum problema no meu cérebro. E então tudo vai fazer sentido. Talvez a
loucura que tanto me incomode nos outros passe a ter outro timbre quando a
minha própria loucura for acalmada. Talvez eu seja a pessoa louca em um mundo
de sanidade pré-distribuída em cartelas de lítio. E tudo pelo que eu tenho
esperado a minha vida inteira, é uma cartela cheia de soluções para a minha
insanidade.
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