São
5 horas do manhã, segundo o despertador alegre do meu celular. Embalada pelo
enjôo matinal e a música que não tem nada a ver com a minha índole (lago
chamado "O sol ja raiou"), acordo. Não por que queira, mas por que
tive a bondade de me submeter a mais uma intervenção cirúrgica em nome de um
corpo que quase se encaixa perfeitamente no padrão perfeccionista de um mundo
doentio.
Sim,
senhoras e senhores. Eu, a guerreira feminista, a intelectual, a crítica, a
inimiga número um dessa prole de Paris Hiltons espalhadas pelo planeta a fora,
me submeti a uma intervenção cirúrgica do mais baixo nível. Eu, a mais radical
das radicais da histórias das feministas inúteis do mundo inteiro, me submeti à
lipoaspiração. Sim, eu sei. Atirem pedras. Chamem-me de hipócrita. Vocês,
queridas aliadas, tem toda a razão. Falem o que quiserem, mas a bunda é minha e
eu resolvo intervir quando bem me aprouver, sem ofensas. Honestamente, quem
estará de cama pelos próximos quinze dias com uma dor terrível nas coxas e 3
caixas de comprimidos para ingerir, sou eu. Então por que não deixamos de ser
preconceituosas e resolvemos abrir a cabecinha rebelde para apenas mais um caso
excepcional? Tive meus motivos, caras amigas. Acreditem quando digo isso.
E,
se, um dia, eu vier a postar um texto sobre como está doendo minhas novas
próteses de silicone, mas tive um bom motivo, fechem a janela e me denunciem à
polícia, por que certamente estarei enganando a mim mesma e a vocês. Ou,
talvez, a prole de Paris tenham me descoberto sozinha e sugado meu cérebro para
fazer esmaltes.
Blá,
blá, blá... Tudo muito bonito, mas você deve estar se perguntando por que
diabos estou eu aqui, de tão boa vontade, compartilhando isso. Veja bem, é que
tive um aprendizado muito importante na minha vida e creio que talvez você
possa aproveitá-lo par a sua também. Ao invés de reclamar, tente agradecer ao
meu altruísmo.
Aliás,
o que seria de você se não fosse pela minha existência fabulosa e inesquecível?
Visto minhas
sapatilhas novinhas em folha e calço meu velho vestido branco. Tudo ao
contrário mesmo, por que quero ser bem realista quanto ao estado de espírito
que eu estava no momento, então não me corrijam. Sim, visto meu vestido novo e
minhas sapatilhas velhas, deixando as imperfeições expostas. Dou, pra quem vê
de fora, a impressão de inocência corrompida. Dou, pra quem sabe de dentro, a
impressão de sono interrompido.
Simples
assim.
Toda
a complexidade do ser humano está inserida na ignorância do próximo quanto à
sua insignificância. Uns chamam isso de grandeza, de
admiração. Outros, de ponto de vista. Eu chamo de ilusão pura. Uma triste percepção platônica de
cada erro escondido por trás de uma imagem composta, unicamente, por modos de
ações propositalmente previsíveis. Em outras palavras, eu sou tão patética que
chego a chamar a atenção na mente alheia por uma simples anormalidade fora dos
confins da percepção do que deveria ser esperado.
Talvez
as pessoas pensem, de primeira linha, que sou alguma espécie de evolução de ser
humano para máquina. Algo entre uma menina e um Transformer. Não que eu esteja
aderindo aos métodos “[1]coitadismianos”, mas
preciso assumir uma posição alheia a mim mesma para que o leitor entenda o que
de fato quero dizer. Vocês já devem estar carecas de saber que uso uma prótese
na perna, uma substituta de ferro para a minha (que descanse em paz) velha
amiga já não presente.
E,
bom, é inevitável que a minha anormalidade seja o motivo de conversa principal
nas rodinhas de amigos que ficam por perto de qualquer lugar que eu passe.
Inclusive se for uma rodinha de nobres senhoras desconhecidas, habitantes de um
planeta novo chamado “Coitadinópolis[2]”, onde se reúnem, na sala
de espera do hospital, para compartilhar entre si os motivos de suas tristezas
e dores mais mórbidas.
Até,
que então, como caída do céu diretamente no meio daquela união divina de pobres
coitadas, caio eu. A jovial rainha das coitadas. E que me perdoem os
sentimentais, mas frieza é fundamental! Nunca vi tantos olhos esbugalhados e
mareados em minha direção ao mesmo tempo. As infelizes me observavam quase como
se eu fosse a resposta de Deus para suas preces não escutadas.
-
Tão novinha!
-
Pobrezinha!
-
Mas caminha tão bem!
-
Se não tivesse de vestido, nem teria visto.
-
Mas a perna quebrou mesmo ou vai dar pra consertar?
Tudo
bem, tenho que admitir que achei a última fala muito engraçada e somente por
respeito à minha inocente mãe não deixei escapulir uma piada sarcástica se
quer. Sou o polimento em pessoa quando se trata de educação em hospitais. Ou de
educação perto de mães. Não tanto com a minha, mas a gente faz o que pode. E
também por que eu prezo pela existência de esperança no próximo, então disse
que sim. Que iria dar pra consertar a minha perna, e o ferro que tinham
colocado no lugar era só provisório. Aposto que, secretamente, aquela mulher se
sentiu mais aliviada ao saber disso. Talvez eu mesma no seu lugar, também me
sentiria.
O
problema é que, passada a hora de lesbianismo puro e muita melação para deixar
minha autoestima inflada feito um balão preenchido a hélio, elas voltaram aos
seus próprios problemas.
-
Pois meu filho, meu pobre filho, recebeu cinco tiros. Já perdi um, vou perder o
outro também.
-
Por que Deus vai me ajudar, somos de Deus, todas nós. A Igreja que é a casa do
senhor, há de nos dar espaço para os seus milagres.
-
Sim, sim, menininha. Deus tem um plano especial na tua vida.
-
Por que a vida é assim mesmo, a menina perdeu a perna mas ta vivinha. Imagina
se não tivesse mais aí? Antes uma só do que morta.
Pausa
para os sorrisos reconfortantes e a ignorância disfarçada em tons de voz
aveludados.
-
Como aconteceu?
Como
que excluída do círculo de coitadismo, uma mulher robusta, com duas bolsas
enormes em baixo dos olhos, parecia ser a única com certa dose de sanidade
completa ali. Sorria para mim com sinceridade e dentes amarelos. Parecia bem
resolvida, até mesmo interessada muito mais na história do que na dor que eu
deveria sentir. Senti que uma simpatia se expandia entre nós.
-
Um caminhão vermelho, ano passado...
A
mesma história de sempre. A mesma tagarelice sobre tragédias, recuperações,
pessoas, eu. Sempre falando de mim como se merecesse algum crédito por ser
atropelada, como se tivesse sido um grande feito histórico no meio do rumo
interplanetário e isso mudasse todo o destino da humanidade. Quando escrevo
isso, posso perceber o nível da minha insignificância de fato.
Não
sou tudo isso. Qualquer um pode ser atropelado a qualquer momento. Qualquer um
poder perder a perna e isso é algo com o qual temos que aprender a conviver. A
morte e a tragédia andam à espreita, sempre esperando pelo melhor momento, pelo
menor deslize, pra te agarrar de jeito naquelas garras maldosas. E não há
posição social, fama, dinheiro ou amor que te salve: é só você contra você
mesmo. É só você, traumatizado e perplexo tentando achar o caminho de volta pra
casa enquanto as portas do mundo parecem se fechar e Deus se torna um monstro
que se diverte às suas custas. Você se sente traído, excluído, errado. Como se
nunca devesse ter nascido.
Você
começa a pensar que teria sido melhor se tivesse morrido, por que assim ninguém
sofreria, ninguém te olharia com dor ou compaixão. Ninguém teria de lidar com
suas necessidades como se você fosse um nada, um vegetal, um peso com o qual
lidar.
E
então, sim. Admito que nos primeiros momentos, depois de ouvir de todo mundo
que você é um sobrevivente, um herói, um x-men por ter sobrevivido à morte, por
ter enfrentado a dor tão de perto, você passa de excluído amargurado para o rei
dos prepotentes. Você acha mesmo que é um herói, um movedor de multidões, a
versão 2.0 de Jesus vinda diretamente dos céus para abrir as mentes alheias com
a sua sabedoria e poderes divinos.
E
você perde a humildade e passa a se sentir muito importante, começa a se ver no
direito de puxar briga, fazer chantagem emocional, chorar quando a roupa fica
com um espaço não preenchido. Você se acha um coitado digno de direitos e
atenções especiais, mesmo quando anda por aí gritando aos quatro ventos que é
igual a todo mundo. Você se sente ofendido quando percebe que as outras pessoas
são felizes e grandiosas sem serem tachadas de aleijadas como você agora é e
começa a pensar que tudo é uma grande injustiça. Que todos mereciam passar pelo
que você passou, que todos deveriam saber como é. Você põe a culpa nos outros,
você os inveja, os odeia, os persegue. Você se torna um monstro, um pesadelo.
Você quer se fechar pra sempre dentro de um buraco e ficar gritando verdades lá
de dentro, pra que todo mundo saiba o quanto são estúpidos e horrorosos com
seus corpos perfeitos e vidas felizes.
Simplesmente
não parece certo que somente você passe por isso.
Até
que, um belo dia, as pessoas se cansam de te tratar como um merecedor de
atenção, como um coitado. Até que a realidade vem e te obriga a se levantar com
certa dignidade, sem essa história preferencial. E então você encontra a si
mesmo e se odeia. E então faz as pazes e, talvez aí, descubra que não é só
você. As pessoas não são perfeitas, não importa o quão inteiros seus corpos
estejam, o quão recheadas suas contas bancárias sejam, o quão beijados seus
lábios são.
Cada
um tem seus próprios defeitos, seus próprios problemas e aprendizados com os
quais lidar. E as pessoas tem o terrível hábito de viverem comparando suas
vidas umas com as outras. Se perguntando por que não podem ser iguais, por que
não poderia ser diferente, por que Deus foi tão mau. As pessoas tem o terrível
hábito de enxergar nos outros o que elas deveriam fazer consigo mesmas.
Pessoas
pequenas invejam as grandes por que não sabem como chegarem lá sozinhas e
sentem-se traídas pelo destino. Não buscam a evolução, nem a felicidade, nem o
dinheiro, nem a paz, nem o amor, nem droga nenhuma por si mesmas: Apenas observam
enquanto os outros fazem por si mesmos com muita competência. Pessoas pequenas se acham incapazes e sozinhas
e burras. Mas ao mesmo tempo, se acham no poder de julgar o que é certo ou não
para os outros e por isso invejam. Invejam o que não podem conquistar, então se
prendem na sua própria insignificância.
E
tudo isso eu percebo quando simplesmente falo sobre o assunto para alguém.
Sobre o meu acidente. Sobre o inferno da minha vida que me possibilitou
enxergar as coisas de outra maneira. Sobre eu ter sido invejosa e cruel e
terrível com tantas pessoas que quiseram o meu bem. A gente só se dá conta
dessas coisas, só se dá ao direito de sofrer uma epifania dessas, depois de
levar uma boas bofetadas na cara pela vida. Sim, a vida. Essa criatura que não
tem corpo, nem cor, nem personalidade, nem existência fixa, mas é a culpada
pela minha queda e pela minha ressurreição. A vida. Essa que é como uma estrada
com uma via única só de ida. A vida, Deus, Destino. Chame como você quiser, mas
foi a vida que colocou aquela mulher às seis e tantas da manhã de uma
sexta-feira a sala de esperas para que eu pudesse escrever esse texto.
Foi
aquela mulher que, com seu sorriso fácil, sua voz sincera e seus olhos
profundos, me contou a história de sua vida em poucos minutos. Em como o
funeral de sua mãe tinha sido há apenas 3 dias atrás. Sobre como tinha perdido
seu pai, seus irmãos, seus primos. Detalhes sobre como um pastor respeitável de
uma igreja evangélica tinha assassinado seu irmão, alegando ser exorcismo,
arrancando-lhe as orelhas, o nariz, os testículos e, logo em seguida, deixando
pelas paredes da casa escritos bíblicos de salvação.
Sobre
como sua família parecia amaldiçoada, com uma morte por mês para se pôr no
calendário. Com velórios sendo o principal evento de encontro dos domingos.
Sobre como, mesmo assim, ela tinha aprendido a conviver com a queda, com a
perda e com a tristeza e achou certa coerência no meio de tudo. Sobre como meu
vestido combinava muito bem com a minha prótese e eu tinha o poder incrível de
tocar as pessoas apenas caminhando por aí.
Sobre
como poderíamos ser grandiosos se quiséssemos, a qualquer momento, apenas
agindo certo quando a oportunidade surgir.
Naquela
manhã, senti que uma luz tinha sido provocada dentro de mim. Pude ver toda essa
história de individualismo pode nos levar diretamente ao fracasso por pura
falta de percepção. Deus, vida, Destino. Não sei. Alguma coisa me tocou e fez
com que a lipoaspiração saísse muito bem, a propósito.
Por
isso hoje, eu, com os quadris e as coxas muito melhor delineadas por
profissionais muito competentes, posso lhe dizer que sou uma menina diferente.
Não por que me sinta mais próxima da perfeição inatingível, mas por que
sinto-me mais humana. Nada que um bisturi e uma dor excruciante não nos ensine.
Nada que uma pessoa simples em um consultório não desperte.
Às
vezes sinto certo medo de viver, como se tocar demais na vida doesse. Como se
eu fosse morrer a qualquer minuto e não tenha feito absolutamente nada de
importante nesse mundo. Mas daí lembro de pessoas que já me tocaram, de pessoas
que sofrem e lutam todos os dias por um futuro melhor. E sinto mais medo ainda.
Medo de que se percam para sempre e nunca tenham a oportunidade de serem
grandes ou exemplares. Que nunca brilhem como deveriam.
E,
mesmo assim, em dias como esses, acordo acreditando que todas elas possam ser
excepcional e grandiosamente felizes.
[1]
Coitadismianos: Palavra criada pela autora para dirigir-se ao hábito de
sentir-se uma coitada. Uma imersão ao modo de vida do coitadismo, sentir pena
de si mesmo. Sentir-se, constantemente um coitado.
[2]
Coitadinópolis: Nome fictício criado pela autora para tratar de um suposto “planeta”
habitado por coitados.
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