As coisas nunca duram para sempre. Essa é uma verdade absoluta.
Acabo de ter um pequeno devaneio, uma triste ou talvez bela visão de meu futuro. Algumas rugas, alguns quilos a mais. Em uma estranha casa pequena e confortável com um forte odor de camomila. Nos meus pés, eu vi pantufas cor-de-rosa e um gato preto. Um temível, mas adorável, gato preto. Meu amigo, meu único companheiro na tarde nebulosa daquele gélido mês de julho. Meus cabelos, nessa época já grisalhos, caiam-me na face, embaraçando a visão da minha monótona casa.
Eu pensava em algo ou talvez estivesse recordando, quando fui tirada de minhas ilusões por um irritante barulho vindo da cozinha. Era aquele maldito telefone. O telefone que eu odiava ouvir tocar, porque simplesmente não tinha o menor desejo em atende-lo. Poderiam dizer o que quisessem de mim, mas eu me orgulhava de ser ranzinza. Alguns seres humanos simplesmente não mereciam minha atenção. E por isso eu me trancava, por dias, apenas com meu gato, que por sua vez não tinha nome. Nem um apelido se quer. Era apenas o "Gato". Conversávamos por horas a fio, apenas por olhares cansados e cheios de malicia. Ele, animal astuto, ouvia de longe meu sussurrar sábio e rancoroso. Eu, como nunca gostara muito de falar, apenas cantava algumas frases no mínimo volume possível, apreciando aquele momento divino de silencio e melancolia.
A tristeza, já enraizada nas minhas veias, ha muito esquecera-se de aparecer nas minhas feições, e por esse motivo, quem quer que me olhasse veria apenas um velho rosto inexpressivo e desprovido de qualquer espécie de beleza. Eu não me importava. Já tinha visto e degustado o suficiente por uma vida de 74 anos. Sentia as coisas acabando e não queria me tornar apenas mais uma espécie de peca arqueológica utilizada para contar historias. Não. Eu queria poder desparecer junto com a poeira. Esvanecer-me junto com o oxigênio que, pouco a pouco, abandonava meus pulmões. Minhas retinas, completamente aniquiladas pela falta de óculos, não esperavam ver muito mais do que apenas borrões do que seria o mundo da realidade.
Quando você tem uma vida inteira para se tornar parte de seus sonhos e devaneios, torna-se comum ignorar o mundo real. Foi o que acontecera comigo. Fechei tanto os meus olhos para o Realismo que, ora por teimosia, ora por esperança, abandonei qualquer oftalmologista com promessas de cura. Tornei-me cega a minha maneira. E hoje, faço nada mais do que desfrutar desses momentos.
Apesar de tudo, não me arrependo por terminar assim. Consegui ajudar muitas pessoas, consegui escrever alguns livros, embora não tenha me tornado uma letrada famosa ou bem sucedida. Advoguei por anos, enriquecendo com o passar do tempo. Não, não enriquecendo. Empobrecendo. A cada dia eu ficava mais pobre. Não de dinheiro. Mas de alma. Foi assim que funcionou a minha vida toda: o aumento da minha conta corrente era inversamente proporcional a minha felicidade. E assim, eu perdi meu coração. Perdi o sopro de vida.Algumas vezes, quando sentia muita falta de mim, eu voltava a escrever pequenos contos tentando, de alguma forma, resgatar um pouco daquele sentimento de sublimidade. Não fui muito sucedida nesse sentido, mas os remédios antidepressivos cuidavam de tudo na maioria dos casos.
Por isso, hoje, não me importo em não enxergar. Alguns dos poucos momentos em que estive feliz, foi quando me neguei a ver minha própria vida. Afirmo-lhe que devo a cegueira meus pequenos momentos de prazer.
Agora eu sou apenas um corpo, velho e seco. Seco não de água ou alimento.
Seco de espírito.
Alguma cidade,Sara Ribeiro, 25 de julho de 2068. - 18:45 PM
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