Translate

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Sobre aprender com os erros

- Sai, sai e não volta mais!

Eu encarei seu rosto rígido, seus olhos vazios. Ele falava diretamente comigo, como se não me conhecesse. A voz grossa mais parecia com um rugido feroz do que com aquele ronronar aveludado de cinco anos atrás. Nos mudáramos. Mais do que queríamos e, consequentemente, mais do que conseguiríamos suportar. Sem muitas alternativas, tentei pensar em uma forma pacifica de evitar mais uma discussão, alguma forma que pudesse desviar dos insultos que viriam. Mas as coisas ja tinham chegado a tal ponto, que a mera menção de uma palavra de sentido oposto era o suficiente para despertar o ódio mordaz que nos separava. Respirei fundo, apertei as minhas temporas e sussurrei:

- Por favor, hoje não.

A bomba explodiu.

O homem na minha frente havia arrumado um jeito estranho e equivoco de interpretar cada virgula pronunciada por mim e, ao invés de promover a paz mundial, eu causei o apocalipse. O sangue lhe subiu a cabeça e os olhos ficaram esbugalhados em uma forma de desprezo que somente ele sabia como fazer. Me lembro que a frase mais suave que saira de seus lábios fora um "sai da minha casa, vagabunda" e nada mais. Uma simples frase. Um simples insulto. Chega a ser engraçado a forma como as palavras perdem certo sentido quando são repetidas por diversas vezes. A situação já estava tão imensamente preocupante, que a palavra "vagabunda" já não me afetava. Só ouvi a porta batendo depois dos passos furiosos e mais alguns insultos vazios.

E, como se fosse adiantar para alguma coisa, caminhei ate a televisão que havíamos comprado em alguma de nossas viagens baratas, juntei a almofada que ele tinha jogado no chão e sentei-me no sofá que ganhei numa promoção merreca de uma loja de moveis. Eu ate que gostava daquele sofá. Era desconfortável, vermelho, aveludado. E se eu tentasse ficar ali por mais de uma hora, meu corpo iria reclamar com pontadas em todas as partes. E nessa luta constante para encontrar palavras que pudessem surtir algum efeito na minha consciência falha, me mantive com a velha almofada verde que recebera a fúria de um homem imbecil e ironicamente ingênuo. Não me sentia como uma daquelas personagens de romances que choram ou comem chocolate por causa de homem. Eu não sou desse tipo. Mas me sentia como uma estúpida. Uma burra total. Estava perdendo o único homem que tinha a capacidade de me amar de verdade por uma falha que iria me custar muito ate que ele esquecesse.

Na verdade, acho que ele não iria esquecer tão cedo. Ao menos era o que ele fazia questão de me lembrar todos os dias as 18 horas, quando chegava cansado em casa e resolvia colocar a culpa das frustrações do trabalho em cima de mim. Depois de todo esse tempo ele ainda acha que eu tenho alguma espécie de culpa no fato de que ele simplesmente não consegue trabalhar direito. Como já disse, um imbecil. E agora, eu havia me tornado mais imbecil que ele por ter errado. Maldita traição! E nem tinha valido tanto a pena assim. Quer dizer, ate o imbecil do apartamento debaixo - que consegue ser mais imbecil do que meu marido muito imbecil - conseguia ser mais másculo do que aquele americano estúpido. Fui fraca. Fraca por ter sido levada por um sotaque que nem é tão envolvente assim e mais fraca ainda por não ter saído na hora certa. E, como se não bastasse a minha falha, ainda tenho que ser lembrada disso toda vez que ele resolve me culpar pela própria incompetência. "Vagabunda" ele diz. "Vagabunda". Vive repetindo isso, como algum tipo de mantra curador de todas as doenças.

Meu relógio apitou. O apartamento ja estava escuro no momento em que o crepúsculo chegara. As janelas, fechadas, não me transmitiram isso, mas eu não precisava olhar pra fora pra saber. Na televisão, uma novela estúpida sobre um casal estúpido que fazem traições estúpidas. Eu já estava farta disso. Levantei, fui ate a cozinha e tentei achar algo comestível naquela casa imunda, sem muito sucesso, quando meu telefone vibrou no bolso esquerdo da minha calca de abrigo. E na hora eu reconheci o numero: aquele italiano bonitinho e imbecil que já estava dando em cima de mim ha algum tempo. Não quis atender. Chega de homens por hoje. Sem americanos, sem italianos, sem vizinhos. Acho que essa historia de adultério já ficou meio brega. Talvez o casamento seja mesmo aquela historinha bonitinha de gente que fica junto só com um imbecil a vida inteira. Eu rio com o pensamento: se sair com vários imbecis já me soa entediante, quem dirá com apenas um? Realmente, um pensamento descartável no emaranhado de reflexões que o imbecil oficial me colocara. Alias, onde estaria ele? Jogado na sarjeta, talvez? Eu disse que me arrependera, disse com todas as palavras que não iria repetir isso de novo. Eu ate tinha prometido a mim mesma não cometer esse erro. Dizem por ai que errar uma vez é humano, mas errar duas vezes na mesma coisa é burrice e burra eu não sou. Voltei pra sala, sentindo uma coisa estranha no peito. Queria saber onde ele estava e o que estava fazendo. Será que voltaria pra mim?

A porta se abriu no momento em que William Bonner me dava seu lindo "Boa noite" e eu olhei diretamente pra figura que estava atrás de mim. Meu imbecil oficial. A barba mal feita, as olheiras profundas. Mas a fúria que ele sustentava ha duas semanas já não estava mais presente nos olhos. Ele parecia calmo, arrependido. E eu não pude evitar de lembrar de como tudo isso começou: Eu e o americano estávamos numa noite entediante em um hotel entediante. Ele, com o inglês mais carregado possível, me aplicava uma cantada barata e eu, no meu ócio supremo, sorrindo falsamente só pensando no momento em que essas convenções sociais terminariam e faríamos o que queríamos fazer. Mais ou menos trinta minutos depois, la estava eu, colocando minhas roupas com um sentimento de insatisfação terrível enquanto o imbecil me olhava com admiração. É sempre assim. Esses homens estrangeiros não entendem nada de mulheres. E mais uma vez, eu tinha de me contentar com o pouco que eles ofereciam apenas pra ter alguma espécie de diversão. Embora essa diversão as vezes se deve ao simples fato de que posso rir de sua estupidez. Mas, voltando, la estava eu com meu sutiã na mão esquerda e o cabelo emaranhado no rosto, quando o imbecil oficial entrou pela porta e me encontrou naquele estado. Depois disso, foram longas semanas de "você não me merece" pra lá "você é uma vagabunda" pra cá e todas essas babozices de homem traído.

Tentei me recompor. A lembrança ainda me deixava um pouco tonta. Não só pelo fato de ter falhado em ação, mas também pela simples lembranca do que aconteceu depois. Uma briga patética entre dois homens patéticos. Um se provando mais idiota do que o outro, como se tirar sangue ou deixar hematomas funcionasse para alguma coisa. Seria muito divertido e eu ficaria honrada se a tal briga não tivesse sido desprezível a ponto de ambos quebrarem os pulsos e não conseguirem lutar como homens de verdade. Então, com um pouco de desprezo e um pouco de esperança, olhei para aquele rosto cansado na minha frente, torcendo pra que ele finalmente tivesse encontrado uma nova palavra no repertorio das acusações, por que a tal da vagabunda já estava se tornando cansativa.

Surpreendentemente, ele se aproximou de mim. Como se tentasse me pedir desculpas por algo que não tinha feito. Eu esperei pacientemente. Não estava com paciência pra isso hoje. E então, um pouco tarde demais, percebi que ele carregava um copo de milkshake de chocolate. O meu preferido. Junto com um buque enorme de rosas vermelhas. Pisquei duas vezes. Meu imbecil oficial finalmente havia voltado pra mim. Caminhei lentamente ate ele, tentando ser cuidadosa, sentindo-me satisfeita enquanto seus braços envolviam minha cintura.

- Oi, meu amor.

Eu sorri.

Naquele momento, eu percebi. Percebi que ele não merecia, nunca mais, em hipótese alguma, passar por aquilo de novo. Percebi que eu havia errado - e muito. E foi nesse momento que eu prometi, de novo, para mim mesma, que nunca, nunca mais, nunca mais mesmo, iria deixar a porta do motel destrancada de novo.

Um comentário: