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domingo, 13 de janeiro de 2013

A Sala de Espera


São 5 horas do manhã, segundo o despertador alegre do meu celular. Embalada pelo enjôo matinal e a música que não tem nada a ver com a minha índole (lago chamado "O sol ja raiou"), acordo. Não por que queira, mas por que tive a bondade de me submeter a mais uma intervenção cirúrgica em nome de um corpo que quase se encaixa perfeitamente no padrão perfeccionista de um mundo doentio.

Sim, senhoras e senhores. Eu, a guerreira feminista, a intelectual, a crítica, a inimiga número um dessa prole de Paris Hiltons espalhadas pelo planeta a fora, me submeti a uma intervenção cirúrgica do mais baixo nível. Eu, a mais radical das radicais da histórias das feministas inúteis do mundo inteiro, me submeti à lipoaspiração. Sim, eu sei. Atirem pedras. Chamem-me de hipócrita. Vocês, queridas aliadas, tem toda a razão. Falem o que quiserem, mas a bunda é minha e eu resolvo intervir quando bem me aprouver, sem ofensas. Honestamente, quem estará de cama pelos próximos quinze dias com uma dor terrível nas coxas e 3 caixas de comprimidos para ingerir, sou eu. Então por que não deixamos de ser preconceituosas e resolvemos abrir a cabecinha rebelde para apenas mais um caso excepcional? Tive meus motivos, caras amigas. Acreditem quando digo isso.

E, se, um dia, eu vier a postar um texto sobre como está doendo minhas novas próteses de silicone, mas tive um bom motivo, fechem a janela e me denunciem à polícia, por que certamente estarei enganando a mim mesma e a vocês. Ou, talvez, a prole de Paris tenham me descoberto sozinha e sugado meu cérebro para fazer esmaltes.

Blá, blá, blá... Tudo muito bonito, mas você deve estar se perguntando por que diabos estou eu aqui, de tão boa vontade, compartilhando isso. Veja bem, é que tive um aprendizado muito importante na minha vida e creio que talvez você possa aproveitá-lo par a sua também. Ao invés de reclamar, tente agradecer ao meu altruísmo.

Aliás, o que seria de você se não fosse pela minha existência fabulosa e inesquecível?

Visto minhas sapatilhas novinhas em folha e calço meu velho vestido branco. Tudo ao contrário mesmo, por que quero ser bem realista quanto ao estado de espírito que eu estava no momento, então não me corrijam. Sim, visto meu vestido novo e minhas sapatilhas velhas, deixando as imperfeições expostas. Dou, pra quem vê de fora, a impressão de inocência corrompida. Dou, pra quem sabe de dentro, a impressão de sono interrompido.

Simples assim.

Toda a complexidade do ser humano está inserida na ignorância do próximo quanto à sua insignificância. Uns chamam isso de grandeza, de admiração. Outros, de ponto de vista. Eu chamo de ilusão pura. Uma triste percepção platônica de cada erro escondido por trás de uma imagem composta, unicamente, por modos de ações propositalmente previsíveis. Em outras palavras, eu sou tão patética que chego a chamar a atenção na mente alheia por uma simples anormalidade fora dos confins da percepção do que deveria ser esperado.

Talvez as pessoas pensem, de primeira linha, que sou alguma espécie de evolução de ser humano para máquina. Algo entre uma menina e um Transformer. Não que eu esteja aderindo aos métodos “[1]coitadismianos”, mas preciso assumir uma posição alheia a mim mesma para que o leitor entenda o que de fato quero dizer. Vocês já devem estar carecas de saber que uso uma prótese na perna, uma substituta de ferro para a minha (que descanse em paz) velha amiga já não presente.

E, bom, é inevitável que a minha anormalidade seja o motivo de conversa principal nas rodinhas de amigos que ficam por perto de qualquer lugar que eu passe. Inclusive se for uma rodinha de nobres senhoras desconhecidas, habitantes de um planeta novo chamado “Coitadinópolis[2]”, onde se reúnem, na sala de espera do hospital, para compartilhar entre si os motivos de suas tristezas e dores mais mórbidas.

Até, que então, como caída do céu diretamente no meio daquela união divina de pobres coitadas, caio eu. A jovial rainha das coitadas. E que me perdoem os sentimentais, mas frieza é fundamental! Nunca vi tantos olhos esbugalhados e mareados em minha direção ao mesmo tempo. As infelizes me observavam quase como se eu fosse a resposta de Deus para suas preces não escutadas.

- Tão novinha!

- Pobrezinha!

- Mas caminha tão bem!

- Se não tivesse de vestido, nem teria visto.

- Mas a perna quebrou mesmo ou vai dar pra consertar?

Tudo bem, tenho que admitir que achei a última fala muito engraçada e somente por respeito à minha inocente mãe não deixei escapulir uma piada sarcástica se quer. Sou o polimento em pessoa quando se trata de educação em hospitais. Ou de educação perto de mães. Não tanto com a minha, mas a gente faz o que pode. E também por que eu prezo pela existência de esperança no próximo, então disse que sim. Que iria dar pra consertar a minha perna, e o ferro que tinham colocado no lugar era só provisório. Aposto que, secretamente, aquela mulher se sentiu mais aliviada ao saber disso. Talvez eu mesma no seu lugar, também me sentiria.

O problema é que, passada a hora de lesbianismo puro e muita melação para deixar minha autoestima inflada feito um balão preenchido a hélio, elas voltaram aos seus próprios problemas.

- Pois meu filho, meu pobre filho, recebeu cinco tiros. Já perdi um, vou perder o outro também.

- Por que Deus vai me ajudar, somos de Deus, todas nós. A Igreja que é a casa do senhor, há de nos dar espaço para os seus milagres.

- Sim, sim, menininha. Deus tem um plano especial na tua vida.

- Por que a vida é assim mesmo, a menina perdeu a perna mas ta vivinha. Imagina se não tivesse mais aí? Antes uma só do que morta.

Pausa para os sorrisos reconfortantes e a ignorância disfarçada em tons de voz aveludados.

- Como aconteceu?

Como que excluída do círculo de coitadismo, uma mulher robusta, com duas bolsas enormes em baixo dos olhos, parecia ser a única com certa dose de sanidade completa ali. Sorria para mim com sinceridade e dentes amarelos. Parecia bem resolvida, até mesmo interessada muito mais na história do que na dor que eu deveria sentir. Senti que uma simpatia se expandia entre nós.

- Um caminhão vermelho, ano passado...

A mesma história de sempre. A mesma tagarelice sobre tragédias, recuperações, pessoas, eu. Sempre falando de mim como se merecesse algum crédito por ser atropelada, como se tivesse sido um grande feito histórico no meio do rumo interplanetário e isso mudasse todo o destino da humanidade. Quando escrevo isso, posso perceber o nível da minha insignificância de fato.

Não sou tudo isso. Qualquer um pode ser atropelado a qualquer momento. Qualquer um poder perder a perna e isso é algo com o qual temos que aprender a conviver. A morte e a tragédia andam à espreita, sempre esperando pelo melhor momento, pelo menor deslize, pra te agarrar de jeito naquelas garras maldosas. E não há posição social, fama, dinheiro ou amor que te salve: é só você contra você mesmo. É só você, traumatizado e perplexo tentando achar o caminho de volta pra casa enquanto as portas do mundo parecem se fechar e Deus se torna um monstro que se diverte às suas custas. Você se sente traído, excluído, errado. Como se nunca devesse ter nascido.

Você começa a pensar que teria sido melhor se tivesse morrido, por que assim ninguém sofreria, ninguém te olharia com dor ou compaixão. Ninguém teria de lidar com suas necessidades como se você fosse um nada, um vegetal, um peso com o qual lidar.

E então, sim. Admito que nos primeiros momentos, depois de ouvir de todo mundo que você é um sobrevivente, um herói, um x-men por ter sobrevivido à morte, por ter enfrentado a dor tão de perto, você passa de excluído amargurado para o rei dos prepotentes. Você acha mesmo que é um herói, um movedor de multidões, a versão 2.0 de Jesus vinda diretamente dos céus para abrir as mentes alheias com a sua sabedoria e poderes divinos.

E você perde a humildade e passa a se sentir muito importante, começa a se ver no direito de puxar briga, fazer chantagem emocional, chorar quando a roupa fica com um espaço não preenchido. Você se acha um coitado digno de direitos e atenções especiais, mesmo quando anda por aí gritando aos quatro ventos que é igual a todo mundo. Você se sente ofendido quando percebe que as outras pessoas são felizes e grandiosas sem serem tachadas de aleijadas como você agora é e começa a pensar que tudo é uma grande injustiça. Que todos mereciam passar pelo que você passou, que todos deveriam saber como é. Você põe a culpa nos outros, você os inveja, os odeia, os persegue. Você se torna um monstro, um pesadelo. Você quer se fechar pra sempre dentro de um buraco e ficar gritando verdades lá de dentro, pra que todo mundo saiba o quanto são estúpidos e horrorosos com seus corpos perfeitos e vidas felizes.

Simplesmente não parece certo que somente você passe por isso.

Até que, um belo dia, as pessoas se cansam de te tratar como um merecedor de atenção, como um coitado. Até que a realidade vem e te obriga a se levantar com certa dignidade, sem essa história preferencial. E então você encontra a si mesmo e se odeia. E então faz as pazes e, talvez aí, descubra que não é só você. As pessoas não são perfeitas, não importa o quão inteiros seus corpos estejam, o quão recheadas suas contas bancárias sejam, o quão beijados seus lábios são.

Cada um tem seus próprios defeitos, seus próprios problemas e aprendizados com os quais lidar. E as pessoas tem o terrível hábito de viverem comparando suas vidas umas com as outras. Se perguntando por que não podem ser iguais, por que não poderia ser diferente, por que Deus foi tão mau. As pessoas tem o terrível hábito de enxergar nos outros o que elas deveriam fazer consigo mesmas.

Pessoas pequenas invejam as grandes por que não sabem como chegarem lá sozinhas e sentem-se traídas pelo destino. Não buscam a evolução, nem a felicidade, nem o dinheiro, nem a paz, nem o amor, nem droga nenhuma por si mesmas: Apenas observam enquanto os outros fazem por si mesmos com muita competência.  Pessoas pequenas se acham incapazes e sozinhas e burras. Mas ao mesmo tempo, se acham no poder de julgar o que é certo ou não para os outros e por isso invejam. Invejam o que não podem conquistar, então se prendem na sua própria insignificância.

E tudo isso eu percebo quando simplesmente falo sobre o assunto para alguém. Sobre o meu acidente. Sobre o inferno da minha vida que me possibilitou enxergar as coisas de outra maneira. Sobre eu ter sido invejosa e cruel e terrível com tantas pessoas que quiseram o meu bem. A gente só se dá conta dessas coisas, só se dá ao direito de sofrer uma epifania dessas, depois de levar uma boas bofetadas na cara pela vida. Sim, a vida. Essa criatura que não tem corpo, nem cor, nem personalidade, nem existência fixa, mas é a culpada pela minha queda e pela minha ressurreição. A vida. Essa que é como uma estrada com uma via única só de ida. A vida, Deus, Destino. Chame como você quiser, mas foi a vida que colocou aquela mulher às seis e tantas da manhã de uma sexta-feira a sala de esperas para que eu pudesse escrever esse texto.

Foi aquela mulher que, com seu sorriso fácil, sua voz sincera e seus olhos profundos, me contou a história de sua vida em poucos minutos. Em como o funeral de sua mãe tinha sido há apenas 3 dias atrás. Sobre como tinha perdido seu pai, seus irmãos, seus primos. Detalhes sobre como um pastor respeitável de uma igreja evangélica tinha assassinado seu irmão, alegando ser exorcismo, arrancando-lhe as orelhas, o nariz, os testículos e, logo em seguida, deixando pelas paredes da casa escritos bíblicos de salvação.  

Sobre como sua família parecia amaldiçoada, com uma morte por mês para se pôr no calendário. Com velórios sendo o principal evento de encontro dos domingos. Sobre como, mesmo assim, ela tinha aprendido a conviver com a queda, com a perda e com a tristeza e achou certa coerência no meio de tudo. Sobre como meu vestido combinava muito bem com a minha prótese e eu tinha o poder incrível de tocar as pessoas apenas caminhando por aí.

Sobre como poderíamos ser grandiosos se quiséssemos, a qualquer momento, apenas agindo certo quando a oportunidade surgir.

Naquela manhã, senti que uma luz tinha sido provocada dentro de mim. Pude ver toda essa história de individualismo pode nos levar diretamente ao fracasso por pura falta de percepção. Deus, vida, Destino. Não sei. Alguma coisa me tocou e fez com que a lipoaspiração saísse muito bem, a propósito.
Por isso hoje, eu, com os quadris e as coxas muito melhor delineadas por profissionais muito competentes, posso lhe dizer que sou uma menina diferente. Não por que me sinta mais próxima da perfeição inatingível, mas por que sinto-me mais humana. Nada que um bisturi e uma dor excruciante não nos ensine. Nada que uma pessoa simples em um consultório não desperte.

Às vezes sinto certo medo de viver, como se tocar demais na vida doesse. Como se eu fosse morrer a qualquer minuto e não tenha feito absolutamente nada de importante nesse mundo. Mas daí lembro de pessoas que já me tocaram, de pessoas que sofrem e lutam todos os dias por um futuro melhor. E sinto mais medo ainda. Medo de que se percam para sempre e nunca tenham a oportunidade de serem grandes ou exemplares. Que nunca brilhem como deveriam.

E, mesmo assim, em dias como esses, acordo acreditando que todas elas possam ser excepcional e grandiosamente felizes.




[1] Coitadismianos: Palavra criada pela autora para dirigir-se ao hábito de sentir-se uma coitada. Uma imersão ao modo de vida do coitadismo, sentir pena de si mesmo. Sentir-se, constantemente um coitado.
[2] Coitadinópolis: Nome fictício criado pela autora para tratar de um suposto “planeta” habitado por coitados. 

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