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segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Epifania Monocromática

Eu cansei de cavar o poço. Cansei de sofrer e continuar procurando mais sofrimento. O alcool e o tabaco são distrações, formas mais simples de lidar com a dor. Mas eu estou simplesmente tão cansada de tentar lidar com isso. Com a vontade de me jogar de um precipício e sair nadando em direção ao nada. Estou tão cansada de sentir a alma latejar. Eu andei procurando por maneiras mais baratas de lidar com esse sentimento de impotência. Não encontrei muitas saídas. Tudo que eu encontrei foram mais motivos pra continuar lutando. Não é possível que a vida se resuma a isso. Que a morte do amor seja maior do que a minha vontade de desbravar o mundo. Não posso aceitar morrer assim. Dei por conta disso hoje, quando acordei depois de 12 horas em coma de ressaca e coloquei todo o meu estômago pra fora em um líquido viscoso e amargo. Algo que eu gosto de chamar de o vômito da dor. O vômito da dor me fez perceber que eu ainda não morreria, só precisava expelir de mim tudo que me fazia mal. Depois de ver o mundo girando por um dia e meio, nada como colocar todos os resquícios de sentimentos ruins para fora. Então percebi. Percebi que não queria morrer. Por que, acredite, eu pensei que fosse. Hoje, lá pelas 6 horas da manhã, quando me dopei de dramin rezando para que o enjôo passasse depois de uma noite inteira sonhando com coisas malucas. Meu corpo inteiro vibrava, sentia minha cabeça despencando. Quase morri.

Percebi que estava desejando agulhas com soro nas minhas veias, um hospital com cheiro de morfina e um enfermeiro que seria doce na medida certa, com suas roupas brancas sorrindo para mim enquanto eu fechasse meus olhos e fosse para um mundo sem dor. Percebi que quase estava morrendo. Meu esôfago queimava. Senti o estômago dar pulos. Comecei a conversar com Deus. Pedi desculpas por ser rebelde. Depois implorei por misericórdia. Por favor, Deus, não me deixe morrer. Por favor, Deus, me ajude a vomitar. Por favor, Deus, eu juro que não beberei até 2015. E assim foi. O estômago recobrou as forças e conseguiu expelir de mim o alcool acumulado com o bolo de chocolate que não me fez bem. As doze horas de coma silencioso saíram de dentro de mim. Sobrou a vontade, a ansiedade, a monotonia dos dias ganhos. Sobrou uma vida com expectativa de sessenta anos e meio de dor e alegria. Não estou preparada para morrer, disse eu a Deus. Não estou preparada para largar tudo e me acovardar no mundo dos mortos, disse eu a Deus. Não vou beber mais, disse eu a Deus. E assim será feito. Até que Deus seja esquecido novamente e venha cobrar minhas promessas diretamente nos portões do inferno. Até que eu perceba que o poço sem fim dos meus dias não irá me levar a lugar algum além do chão. Eu precisei levantar e ir caminhar no sol respirando o cheiro do verão para perceber que cavar e cavar só vai me levar mais ao fundo. Não se tem notícias de ninguem que tenha cavado e saído no Japão, por exemplo. Peter Pan não chegou na Terra do Nunca atravessando um poço. Peter Parker não enfrentou milhões de vilões choramingando num poço. A única personagem do mundo atual que se deu bem foi a Samara de O Chamado. A única que morreu e saiu do poço para contar a história. E, mesmo assim, não acabou bem.


Percebi hoje, enquanto tremia e vomitava dentro do meu proprio poço e tentava limpar minhas mãos sujas de barro na bainha do shorts, que ninguém mais vai vir me dar bandaids. Eu passei muito tempo sendo curada por outras pessoas. Me acostumei a esperar que alguém pulasse dentro do poço e o tornasse mais bonito. Me acostumei a olhar pra cima implorando por companhia e ser brindada por duas, três, quatro de cada vez. Me acostumei a não curar a mim mesma, mas ser curada por obra do destino. Veja só que irônico, não curou. Somente deu conta de feridas superficiais. Seria muito mais saudável se o ferimento tivesse cicatrizado e sumido para sempre. Não sumiu. Estou há muito tempo nesse poço esperando por ajuda. Mas toda a ajuda foi embora. Agora resta somente eu. Me comunicando com pessoas presas dentro de seus próprios poços. Percebendo que precisamos aprender a sair sozinhas de dentro desse lugar. Não sei como vou fazer isso, mas estou começando a escalar. Os tijolos são escorregadios, minhas mãos não alcaçam alguns. O pé da prótese atrapalha na subida. Os músculos dos braços estão ainda em desenvolvimento. Mas posso ver o sol. Posso ver uma caixa inteira de bandaids e um pote de morfina no meio do caminho. Se for necessário vou injetar algumas doses, apenas para conseguir lidar com a escalada. Mas vou conseguir sair, disse eu a Deus. Mesmo que todos os ateus estejam certos e você não exista, vou conseguir sair. Mesmo que as outras pessoas insistam que estar no poço é mais confortável. Estou muito cansada para continuar esperando ajuda. Quero ver a felicidade pelos meus próprios olhos. Adeus, poço. Foi bom enquanto durou. 

Ontem arranquei uma casquinha dura do meu tornozelo. Sangrou pra caramba, até que secou e se formou outra casquinha em cima. Percebi que não posso lutar contra todas as feridas. Vou precisar dar o tempo necessários para que se curem sozinhas. 

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