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domingo, 16 de novembro de 2014

Psicose

Nunca gostei de limpar a casa. Nunca fui a primeira a levantar a mão na hora que a mãe oferecia uma recompensa pra quem lavasse a louça primeiro. Preferia passar o mês inteiro catando moedas nos bolsos alheios do que ganhar mesada por ser prendada. Então, você deve imaginar como é estranho quando eu me pego com a vontade de limpar a casa num domingo. É nesse momento que eu percebo que tem alguma coisa errada. Pego o esfregão de aço, a esponja e o detergente e resolvo que vou decifrar todos os problemas mais profundos e casca grossa da pia e do fogão. Fico ali, por horas esfregando uma sujeira que há anos não sai do metal. É nesse momento que percebo o quanto me sinto suja por dentro. Cheia de problemas não resolvidos que precisam ser limpados. Mas, diferentemente da louça ou do fogão que a gente pode aplicar toda a força dos músculos do braço pra resolver, não consigo achar solução para os meus problemas. Não consigo ver uma saída para a dor.

Nunca gostei de casquinhas na cicatriz. O processo de cicatrização do meu corpo é muito lento, demorado mesmo. Cria uma casquinha dura, que me incomoda pra caramba. Quando eu tinha cerca de cinco anos, lembro que passava o dia inteiro pulando em árvores ou correndo atrás dos meus gatos e cachorros na rua. Isso me dava milhões de casquinhas. E eu, como inimiga numero um da cicatrização natural, ia lá todos os dias e coçava ao redor. Coçava, coçava até ficar vermelho. E daí a cicatrização já em processo mais maduro, coçava também por dentro. E, cara, como eu odiava ter que esperar a casquinha cair sozinha. "Se tu arrancar, vai ficar com a marca pra sempre", avisava minha mãe. Nunca me importei com marcas pra sempre, desde que eu pudesse arrancar aquela porcaria e me ver livre de casquinhas idiotas. Não mudei muito. Continuo preferindo ver o sangue jorrar a ter que aguardar pacientemente que a casquinha caia pela vontade do universo. E é quando lembro disso que me percebo melhor. Minhas casquinhas da alma não cicatrizaram ainda, mas eu insisto em arrancar todas com as unhas e dentes, preferindo que ardam a ter que esperar que se curem sozinhas.

Não consigo lidar com o tempo direito. Sempre pensei que fosse alguma coisa a ver com a minha ansiedade. Ansiedade comum, ansiedade boa. Com passarinhos no estômago, coração acelerado, vontade de vida. Mas não. Percebo agora, quando estou com as minhas palpitações elevadas e a vontade de morrer aumentado, que talvez eu tenha algum problema mais grave. E não sei como lidar. Não sei como diminuir a sensação de que o mundo gira rápido demais e me encolhe a cada segundo. Não sei como parar de pensar em todos os problemas da minha vida e da vida das outras pessoas. Eu busco por soluções, distrações, maneiras diferentes de lidar com a dor. Nada adianta. Eu tento lidar com os problemas quando faço coisas estúpidas, quando ponho uma lista de objetivos na minha cabeça. E, se de alguma maneira eu não cumprir essa lista, isso me deixa ansiosa também. Me faz sentir pequena e encolhendo, meu peito se fecha, curvado em cima do meu coração. Sinto os pulmões menores, o ar passando com dificuldade, as costelas cada vez mais apertadas. Quase como se minha alma estivesse rebelde, tentando explodir para fora do meu corpo e ir tentar a vida de outra maneira.

Tenho medo. Medo de acabar sozinha e presa em uma camisa de força. Imaginando todas as coisas que eu deveria fazer na minha lista de coisas para fazer antes de morrer. Tenho medo que as palpitações levem embora o sabor da comida ou a beleza do banal. Por que o banal é bonito. A praia é bonita. As coisas tranquilas da vida são bonitas. Eu só não sei disso por que talvez realmente tenha algum problema no meu cérebro. E então tudo vai fazer sentido. Talvez a loucura que tanto me incomode nos outros passe a ter outro timbre quando a minha própria loucura for acalmada. Talvez eu seja a pessoa louca em um mundo de sanidade pré-distribuída em cartelas de lítio. E tudo pelo que eu tenho esperado a minha vida inteira, é uma cartela cheia de soluções para a minha insanidade.


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