Translate

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Diário de viagem, Domingo

A sujeira pairava no ar, como uma nova espécie de oxigênio sendo transportada diretamente para os meus pulmões. Lojas e mais lojas acumuladas, empilhadas como caixas de papelão em algum beco com lixo e cheiro ruim. As pessoas pareciam ratos, que, assustados, corriam de um lado para o outro. A massa procurando um combustível para a sua vidinha pacata, uma solução para a síndrome do consumismo compulsório. E, em meio ao barulho exagerado, aos berros exagerados, à fumaça exagerada e á loucura exagerada, estava eu. Olheiras enormes no rosto, calos enormes nos pés. Estava eu, sentada no chão no meio de uma das milhares das galerias principais. Cansada, apavorada e faminta. Estava eu, a encarar um lindo paraguaio que testava o violão cor de rosa na sua mini lojinha de instrumentos musicais. "Coitada", ele deveria pensar. A mendiga jogada na galeria parecia quase interessada em música, quase interessada em algum sopro de vida. Era o glamour do Paraguai abrindo espaço nos meus poros entediados, estuprando minha mente inocente. Foi aí que tive a epifania do mundo. Foi aí que eu vi que toda essa história de desenvolvimento econômico é uma droga sem fim. É o povo brasileiro torrando dinheiro desesperadamente, como uma forma de impor sua existência no plano econômico mundial. É o povo paraguaio tirando o máximo proveito disso. Devo ter gastado o que? Mil dólares? Pouco. Muito pouco para uma brasileira do século XXI, em plena ascensão do Capitalismo, em pleno desenvolvimento nacional.

A miséria gritante dos vendedores ambulantes esmagava a minha ilusão de elegância. Lá estava eu, a desfilar com o nariz empinado, como que pra mostrar minha nacionalidade fortuita, minha sorte de ter nascido no maior país da América Latina. E lá estavam eles, os vendedores, as crianças e os espertinhos, todos eles a lapidar meus conceitos pré formulados de desenvolvimento, todos eles a abrir meus olhos que estavam lacrados pela ignorância. Fui arrogante, caminhei com o peito empinado. E na minha arrogância, fui enganada. A minha esperteza não foi pária para a experiência de quem me vendia por preços baixos, mas ainda assim, altos. Lá estava eu a gastar meu dinheiro, a me entregar de bandeja para as garras do consumo inútil. Descontrolada, afoguei meus problemas nas notas de dólares. Desolada, escondi meus medos no cartão de crédito. O problema é que me ocorreu uma espécie de adrenalina desconhecida. Como uma descarga elétrica sendo constantemente estimulada dentro dos meus nervos. Foi o tal do sopro de vida. Me movia, com as pernas moles, pela poluição urbana que me envolvia na falsa esperança do salvamento. Caí no abismo do capitalismo. Logo eu, que o abomino tanto. Era eu a estrelar minha própria propaganda chique, minha própria imagem da consumista moderna e bem sucedida. Era a manipulação comercial sendo finalmente ingerida pelos meus órgãos. Que vergonha! No que me transformei? Era eu no melhor resultado sujo que empreendedorismo jamais poderia sonhar. Era eu sendo comprada e seduzida e abduzida e enforcada pelos meus próprios desejos consumistas. O abismo que se abria em baixo dos meus pés, sugando meu bom-senso e inebriando a minha recusa.

E então, algo aconteceu. Eis que uma voz ao fundo, antes ignorada, começou a ganhar mais força. A voz que me dizia para parar, pensar e analisar. A voz que me fez sentar no chão sujo do meio da galeria e respirar lentamente até que o oxigênio internacional limpasse meu cérebro de toda a turbulência capitalista, de toda o congestionamento, de todo o pré-deslumbramento e de toda a ilusão criada no meu mundinho imaginário lotado de meninas iguais a mim, com sorrisos brancos e falsos, cabelos lisos e falsos, roupas lindas e falsas. Cheio de meninas iguais a mim, cópias feitas diretamente do Paraguai. Quanta originalidade! Se imaginar falsa como o Paraguai quando se está sentada em solo paraguaio. Taí uma piada que nunca vai fazer graça. Um trocadilho que dificilmente será entendido. Mas eu entendo. Eu sempre entenderei. E sei que tu, o pobre ser que insiste em me ler, também, a partir de agora, entenderá. Na rua, milhares de pessoas passavam lentamente, rapidamente, descontroladamente. Milhares de pessoas, cada qual com seu saco lotado de problemas e mágoas afundadas em lojas que não cobram impostos, resumidas a objetos que jamais serão usados. Cada qual com seu próprio projeto infalível de enriquecimento fácil, jamais pensado. Cada qual com sua própria culpa queimando por dentro. Cada qual a olhar para o lado distraidamente e sentir pena da coitada que os observava com olhos esbugalhados de fome. Era eu, a coitada. Louca de fome. Louca de pedra mesmo. Era eu a admirá-los, a desprezá-los, a invejá-los. Louca por algum pingo de realidade. Da minha realidade.

Sabe qual a sensação que dá quando a gente atravessa aquela linda ponte entre Foz do Iguaçu e a Ciudad del Este? De que somos a Alice atravessando o portal do País das Maravilhas. E quando eu digo maravilhas, não me refiro a criaturas magicas ou árvores que cantam. Me refiro a uma miséria que clama pela existência da ignorância e do êxtase turístico. Me refiro a voltar no tempo, graças ao fuso horário que, magicamente, te faz voltar sessenta minutos atrás e recomeçar o tempo perdido nesse Brasil cheio de impostos e injustiças e regrinhas. Me refiro a preços baixíssimos, a qualidade baixíssima e a pechincha elegantíssima. É o teu mundo cheio de carnaval e samba e preços altos deixado pra trás e os teus olhos e ouvidos se esbaldando na contemplação do impossível. De repente, tudo é consumível, tudo é comprável, tudo é necessário. É como a maçã proibida, multiplicada por mil. Como uma chuva de maçãs proibidas. E todas elas se tornam tão acessíveis! Tudo é possível, tudo é permitido, tudo é adquirido. O primeiro impulso é sair comprando tudo que dança na tua frente, só pra se permitir sentir aquilo que a classe média brasileira não te permite sentir: liberdade econômica de escolha. Depois, vem a culpa. Depois, a realidade. E que realidade! É muito difícil se segurar, se controlar. É difícil não se encher de besteiras que engrandecem os olhos e embelezam o armário e seduzem o bolso. Admito que fiquei orgulhosa da minha determinação em ser pão dura comigo mesma, embora tenha gastado bastante. Mas os meus gastos não interessam ao assunto. Preciso falar sobre a minha epifania! A epifania que me fez ver, naqueles cinco dias de êxtase e beiras de estrada e paisagens lindas e dezesseis horas de viagem, que a minha vidinha pacata em Porto Alegre não significa nada.

Sabe o quê? Precisei me despir de tudo que me prendia nessa minha realidade fechada pra enxergar o mundo imenso que tem lá fora. Percebi o quão medíocre é a minha rotina cheia de horários e compromissos e ódios. Tudo isso é tão insignificante e estúpido! Passei minha vida inteira fechada no meu próprio círculo de sonhos repetitivos e comportamentos previsíveis, no meu próprio planeta cheio de regras e concepções pré-estabelecidas, conhecendo tudo que me era alcançável, vivendo somente o que estava dentro daquele quadro chato da mesmice esperada de mim, por mim. Precisei sentir saudade de toda essa opacidade pra perceber o quão isso fica enraizado na gente. Por isso que é tão difícil mudar: A gente sente saudade de tudo, até do que é insignificante, até do que a gente odeia. Eu odeio o bairro onde eu moro, mas naqueles quatro dias a milhas de distância, senti uma saudade imensa desse bairro medíocre de merda. Não sei se era pra ser uma lição existencialista ou apenas mais um aprendizado, mas gostei disso. Gostei dessa sensação de ser um peregrino, andando sem rumo e sem lugar fixo por entre as ruas desconhecidas desse meu mundo enorme. Gostei da sensação de sentir falta da minha vida e horários seguros. Quando eu tô em casa, sei exatamente o que fazer e como fazer. Quando eu estava lá fora a andar sem rumo, eu não sabia de nada. Nem do que ia comer, nem de onde ia dormir. Mas, de certa forma, me adaptei rápido.

E cá estou eu, sentada nessa galeria, tendo essa epifania futurista. Sei que daqui alguns dias estarei em casa escrevendo exatamente sobre isso, então preciso ser bem específica. O mais curioso, é que aqueles meus costumes estranhos também estão presentes aqui, embora sejam diferentes. Todo o lugar cria seu próprio modo de vida, sua própria cultura pré-estabelecida, suas próprias regras subentendidas. E eles seguem nesse mesmo rumo que eu sigo na minha mesmice, por que é essa a mesmice que eles conhecem. Essa loucura, essa busca infinita pelo lucro, não importa o que aconteça. Não é lindo? Não é lindo como os povos se moldam ao seu próprio jeito? Algo começa a inchar meu peito... É dor de fome, é a fartura de experiência invadindo minha existência totalmente inexperiente. Preciso ir embora agora, mas quero que esse dia fique registrado como o dia em que eu me apaixonei por um lojista paraguaio e sobre como o cabelo ondulado dele me inspirou a escrever esse texto.


 


 

Nota de Rodapé: Já nem me lembro do rosto do cara.

Nenhum comentário:

Postar um comentário