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segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

A moça do Camafeu

A moça do camafeu dava seus passos largos sob as pedras ardentes do cais. O joelho doía na ferida aberta que dilacerava sua carne sensível com o atrito que a prótese causava na pele. O suor derramava-se imponente por entre os vincos do sangue seco. Tinha dentro de si uma morte pela qual chorar, mas não se lembrava ao certo de qual defunto seria. A dor nas pernas a impedia de esquecer-se de sua condição limitadora: não podia caminhar demais. Caminhe pouco, era o que todo o resto dizia.

E tinha sido exatamente assim desde aquele dia quente de dezembro passado. Desde aquele acidente que levara um terço de sua perna pra fora do mundo. Não que devesse ser uma historia triste sobre perdas de membros, mas achei que talvez fizesse certa diferença na percepção alheia o adicionamento de mais detalhes explicativos. A moça do camafeu era jovem e apaixonada, não tinha tempo pra sentir dor nas pernas ou reclamar de feridas que se curam lentamente. Não tinha tempo para sofrer e, por isso, era inexperiente na arte da dor. Mas tinha certo conhecimento em matéria de perda.

Dentro de si, guardava sopros irreconhecíveis de uma vida que nunca teria. Queria ter pernas bonitas. Queria ter o cabelo longo e saber falar todas as línguas do mundo, exceto japonês: gostava de alimentar certos mistérios. Queria ter mil olhos, pra poder ler quinhentos livros ao mesmo tempo. Queria ser lendária, mitológica, imortal, vampira, professora, azul. Simples assim, ela queria ser azul.

A moça do camafeu dava seus passos largos sob as pedras ardentes do cais do porto. O guarda simpático lhe acenava um tchau. Ele sorria, seus olhos cansados. Talvez ele me reconheça, pensou ela, embora não tivesse a mínima fé nisso. Talvez ele saiba por que me sinto triste. Talvez possa me ajudar a encontrar o velório. E, de logo, achou-se uma tonta. Que diabos o guarda poderia saber da vida? Nada, nada. Era só um homem feliz, casado, com filhos. Talvez fosse pirata, talvez fosse gay. E se não tivesse filhos? Poderia ser infeliz. E se não tivesse mãos? Ou pernas?

Ela já não duvidava de nada. Aprendera a não confiar nos próprios olhos, esses fofoqueiros mentirosos e superficiais. Sempre nos enganando com suas imagens ao pé da letra. Olhos são os órgãos mais belos e mais burros que o ser humano carrega. São traiçoeiros e mentirosos, um perigo quando mal usados. Ela tinha aprendido a controlar os seus olhos e nunca acreditar no que eles diziam. Ela nunca mais seria passada pra trás, ah não mesmo.

A moça do camafeu doía, ela toda. Como uma ferida aberta ambulante sem cicatrizante algum pra ajudar na reposição do tecido morto. Ela morria lentamente e queria chorar, mas não sabia pelo quê. Fantasmas a cutucavam pelos lados, faziam cócegas em seu nariz, ventavam em suas têmporas. Sussurros a faziam ter calafrios. Apenas um casal jovem a fazia companhia e ela se sentiu total e ridicularmente sozinha, quase como uma intrusa. Ela era a figurante estúpida que se intrometera na tomada errada, na historia errada, na paisagem errada, no momento errado. Toda equivocada, deu seus passos doloridos pelas pedras quentes.

O pé queimava por dentro do tênis surrado, a pele arranhava em carne viva a cada passo, mas ela quase não sentia. Era como se, de tanto amor, tivesse também certo torpor. Já quase não sentia dor alguma, era tudo um grande incômodo do universo, algo com o qual se aprende a conviver, uma pedrinha no sapato que se caminha sem notar quando o costume se torna maior do que o incômodo.

A moça do camafeu estava perdida, louca, triste e de luto. De luto pelo quê? Não fazia ideia, mas sentia saudade. De tudo, de nada, do todo, talvez. Não fazia ideia. Corria sob o sol fervoroso de dezembro, procurando por certa lógica na insanidade. Procurando por certo lugar no vazio. Fazia desejos desconexos para o universo, um Deus que não conhecia.

O senhor de longe a observava com certa adoração: era uma jovem adorável aquela, pensava ele. O senhor de perto se divertia: era jovem e queria só dar alguns beijinhos na namorada sem ser incomodado, mas achava certa graça da moça que se despedaçava ao vento bem abaixo de seus olhos. Carregava com ela, por sob o colo, uma joia rara. Pedras azuis emolduravam o retrato de uma moça no século XVIII. O rapaz não fazia ideia de nada disso, mas achou certa graciosidade no modo como aquela velharia contrastava tão bem com a jovem espevitada.

A moça do camafeu olhava ao longe do Guaíba com olhos felizes e um sorriso triste. Ou talvez fossem olhos tristes e um sorriso feliz. Não saberia dizer, não a via. Estava absorto eu meu estudo de feições, minha busca por personagens. Ela, com certeza, daria uma ótima personagem, percebi eu. Com suas mechas azuis a flutuar por entre as chiquinhas castanhas. Era um descompasso, um anacronismo. Parecia saída de outra época, de outro mundo, de outra idade. O rosto juvenil carregava em si um olhar ancião. Um olhar de quem já morreu e já sabe como é morrer. De quem já perdeu um filho, talvez. De quem já amou e foi embora. De quem já viu a fome e ainda assim não tenha ideia de como é se estar faminto.

Então, como que lembrando-se de algo em meio aos seus desatinos longínquos, a moça do camafeu direcionou-se lentamente pela saída, com as cabeça baixa e o pote de sorvete colorido por entre os dedos melados. Não via seu rosto, mas me parecia de costas que estava satisfeita com algo, talvez com a tristeza. Parecia triste e, ainda assim, paradoxalmente feliz. Era o retrato da filha que a alegria e a morbidez tiveram.

A moça do camafeu sentia-se triste, mas não era esse o sentimento padrão de todo o ser-humano com o mínimo de autoconsciência? Sentia-se triste quase como se pudesse chorar. Quase como se pudesse sentir falta de algo que ainda não reconhecia como seu. E, paralelamente, sentia-se alegre. Totalmente feliz. Como os ventos anunciadores da chuva que viria em breve. Como um aviso cósmico sobre as bem aventuranças próximas. Como um contraste bonito para se iniciar um recomeço.

A moça do camafeu não sou eu. É o meu alter ego, tentando desenhar a si mesmo como um personagem decente. É o meu subconsciente escrevendo sobre seu consciente. Um quê de esquizofrenia aqui, um quê de narcisismo ali e estamos bem. Não me reconheço como moça no alto de meus x anos, mas gosto dela. A moça que observa a tristeza com certa alegria. Gosto dela. Essa saudade do que não conheço, do que nunca possuí. Tenho certa inveja de sua falta de razoabilidade. Tenho certo sentimento por nossas semelhanças.

A moça do camafeu foi embora, carregando consigo meus tormentos e minhas curiosidades. No íntimo, as lágrimas que não caíram, os sorrisos que não provoquei.

Amei-a.

Fui-a.

Descrevi-a.

E, como a boa amadora que sou, transformei-a em texto, só pra não ficar a assombrar-me pela memória.

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