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terça-feira, 31 de julho de 2012

Nada

Observo a página em branco do word, deixando-me levar pelo peso na consciência. Há quanto tempo não escrevo? No mínimo duas semanas... Duas semanas sem escrever. A falta de prática explode pelos meus poros, se transformando em um costume bárbaro, uma falta meticulosa de eu contra mim mesma. Os dedos começam a dançar em cima do teclado, impacientes. As ideias começam a borbulhar, assassinando grande parte dos meus neurônios pelo esforço de transformar pensamentos desconexos em frases bem compostas. Onde estava? Ah sim, ia escrever algo sobre os olhos de uma menina. Eram fugidios e possessos. Uma vertigem toma o lugar de minha imaginação e sou tomada pelo fascínio daquela imagem. A garota me observa sem saber que estou ali. Estamos ambas perdidas. Os braços caídos ao lado do corpo com os dedos a tamborilar a cadeira negra de carvalho. Também estou assim, penso eu. Também observo o nada como se, por alguma sorte, algum fantasma orasse por mim. Torço pela vitória dela, ainda que não saiba sobre o que se trata sua divagação. Mas será que ela também me vê? Será que ela também torce por mim? Busco por reciprocidade em um lugar desconhecido. Mas, por Deus, temo que esteja ficando doida.

Então, num sobressalto, ela se curva sob a velha máquina de escrever e seus dedos agitam-se num badalar rápido e confuso sob as teclas barulhentas. O brilho nos olhos, a curva dos lábios e o modo como suas costas se arcam quase como uma onça a caçar, lembram de mim mesma ao inventar historias, ao viajar por mundos, ao descobrir dentro de mim o universo jamais antes conhecido. Com todas as forças do meu ser, eu a invejo. A inspiração claramente nasceu naquele coração e daquela mente sairão histórias imortais. Aquele rosto ficará gravado para sempre no coração de quem a procurar e suas palavras jamais morrerão. Somos um paradoxo. Ela transforma sua inteligência em uma melodia escrita para o mundo a fora, presa nos confins de algum ano de um passado remoto. E eu deixo que minha inteligência apodreça em algum canto escuro, presa nos confins de uma modernidade de extrema chatice que me condena ao eterno descontentamento.

Fecho aquela imagem. O rosto da garota me irrita, então volto para mim mesma. O barulho de chuva caindo já não me é suficiente para embalar historias. Já não imagino diálogos, já não quero viver outras vidas. Não há nada que me incomode, nenhuma critica, nenhum elogio. Sou um nada. Um grande, redondo, vazio e entediante nada. Ainda nem me tornei escritora e já sinto como se estivesse falida, no falecer de uma dádiva que ainda nem teve tempo de nascer. A morte prematura do meu talento me sufoca, me deprime, me revolta. Como pude chegar a esse ponto? Como pude me deixar levar por valores supérfluos? Já não vejo mais os meus mundos, já não encontro mais as minhas palavras. Acho que estou tendo uma espécie de crise de meia idade... Meus dedos imploram por mais. Oh, por favor, digite. Oh, por favor, crie. Mas eu não crio, não posso mais. Não há chuva que me anime, não há historia que me comova. Sou um nada que sobre nada poderá escrever. Não quero que isso seja uma despedida, pois despedir-me de um dom seria como despedir-me da vida. Não posso viver uma vida em que não há escrita. Sem poesia, eu morreria. Mas estou num estado que é ainda pior do que a morte. Algo entre o inicio e o fim. Uma espécie de perdição, de nada, de vácuo, de breu.

Observo de longe enquanto a menina se agita com sua maquina de escrever e, tardiamente, percebo que a conheço. Os óculos que escorregam pelo nariz, são os meus. Os dedos que se movimentam pelas teclas, são os meus. Cinco anos. La estou eu, aos cinco anos, a brincar de ser escritora na velha maquina de escrever da minha mãe. Lá estou eu, aos cinco anos, criando mais do que eu aos dezoito. Observo-me no auge da minha infância no exato momento em que o meu presente está falindo.

Mas sinto nada. E nada poderei dizer.

Isso não é uma despedida. É apenas uma forma triste de dizer que já não sinto tristeza. Mas preciso dormir, a vida continua amanhã. E quem sabe escrever, finalmente, tenha virado algo desnecessário.

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