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sábado, 28 de julho de 2012

Sobre a liberdade de ser cego

Joguei minhas malas no chão e deixei que as lágrimas corressem livremente pelo rosto. Mesmo vermelha, mesmo tremendo, mesmo gaguejando, eu ia falar. Ia mesmo.

- Quer saber? Quer saber o que me deixa mais triste?

Ela olhou para o lado, buscando alguma saída, algum olhar indiferente. Sem nenhum sucesso. Sem nenhuma escapatória. Respondeu de modo seco.

- Não.

- Mas eu vou falar. Vou falar sim. – Fui mais pra frente com toda a força, apontando o dedo pra aquele nariz pálido. – Me deixa triste saber que vocês tem tudo. Tudo pra dar certo, mas não conseguem enxergar. Quer saber? Pode até ter dinheiro. Pode até ter um corpo bonito. Pode até ter opiniões inteligentes. Mas perfeição não exige contemplação. A verdade é que você é uma burra. Você e sua realidade estúpida da adolescência tipicamente americana. Você e seu dinheiro estupido. Você e essa sua merda de falta de auto-estima que destrói a porra da pessoa maravilhosa que você poderia ser. E isso me deixa triste, tão triste que eu te odeio agora. Eu te odeio profundamente por não perceber o próprio valor, por não acender a própria luz. Como que tu não ve? Como que tu não ve o brilho que tu tem?

- Eu preciso ir embora, eu precio...

Disse ela, indo para trás, tentando não parecer impotente. Quase tapando os ouvidos. Mas eu não a deixaria ir tão facilmente. Não mesmo. Caminhei pra frente de modo que a prendi contra a parede, sem escapatória. Dane-se

- Não, você não vai a lugar nenhum. Quer saber? Eu te admiro pra caramba. Porra eu admiro todas as tuas virtudes, toda a tua humildade, toda a bondade que sai do teu coração, que a propósito também é enorme. Mas eu odeio essa bolha maldita que te impede de brilhar. Como tu pode ser tão idiota? Tu tem luz própria, porra. Tu ilumina esse mundo podre com teu sorriso triste de insatisfação. Mas isso não é suficiente, por que tu não quer iluminar. Teu corpo é uma vela de cera apagada. É uma lâmpada de vidro que não funciona. É como a lanterna defeituosa que não pode ser usada. Pra que guardar tanta beleza? Pra que? Alias, por que todas as pessoas mais brilhantes insistem em se esconder atrás de máscaras, futilidades e friezas? Por que esconder toda a tua força? Vai me explica de uma vez, por que eu sou burra demais pra entender essas coisas de gente clássica. Vai, enfia na minha cabeça de classe média o que só a tua alta cultura (pesquise no google) consegue entender.

- Eu não sei o que tu quer dizer com isso.

- Sabe! Sabe sim! E sabe muito bem! Tu é oca por dentro por opção. Todo mundo oco é oco por opção. O mundo transborda de escolhas, de conhecimento, de dúvidas. E sabe o que é que gente que nem tu procura? Soluções. Respostas exatas pra todo o mistério da vida. E daí o amor é uma mentira, a confiança é uma mentira, Deus é uma mentira, Eu sou uma mentira. E daí a vida inteira faz tanto, mas tanto sentido, que chega a perder o gosto de misterioso. E daí tudo pode ser tão explicado, que se torna muito sem graça. Tudo é tão fácil, tão alcançável que se torna muito chato. E viver é o eterno ato entediante destinado a nós, seres que viemos do Big Bang. Somos macacos pensantes com respostas prontas para tudo, rastejando para uma vida entediante de destaque.

Ela piscou, enquanto as lagrimas caíam incessantes pelas bochechas rosadas. Parecia confusa, triste.

- Eu não consigo entender o que tu quer de mim!

Foi então, com certo desapontamento, que eu percebi: Não havia como salvá-la. Não havia absolutamente nada que eu pudesse fazer por ela, além de permanecer ao seu lado torcendo. Existem certas coisas na vida que ninguém pode fazer pela gente, só nos mesmos. E enxergar a realidade é uma dessas coisas. Eu não poderia simplesmente mostrar a ela minha visão, eu não poderia simplesmente faze-la entender: Ela que tinha que enxergar sozinha. Era como se eu estivesse segurando um quadro bem na sua frente e ela estivesse com os olhos vendados sem a mínima ideia de como tirar a venda. E não cabia a mim fazer isso, por que é uma das coisas que apenas nós podemos fazer por nós mesmos.

Cada um tem sua hora, cada um tem seu tempo. A gente não pode forçar o cego a enxergar, tem que partir dele. É tudo uma questão interna, de força de vontade, de sede. Algumas pessoas passam a vida sem pensar, sem se conhecer. Outras, só chegam a esse estagio na velhice. E ainda há alguns lunáticos que alcançam esse estado de auto observação na vida adulta. Mas há casos, em que certas pessoas, seja por iluminação divina, seja por pura paranoia, conseguem se dar conta dessas coisas ainda jovens. Mas é uma questão individual. Não cabe a mim influenciar a evolução do próximo e muito menos força-lo a ver coisas que somente eu vejo. Seria absurdo!

Então sorri, deixei que meus braços caíssem inertes ao lado do corpo e respirei fundo, tentando deixar que a minha revolta sumisse. Meu trabalho ali já estava concluído, era tudo que eu podia fazer.

- Tudo bem – disse eu. Tudo bem.

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