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sábado, 6 de outubro de 2012

O convite

As gotas douradas caíam em cima do meu couro cabeludo, de um modo dolorido, forte, cruel. A percepção crua de verdades não percebidas estava sendo forçada pra dentro de mim, tomando conta da minha circulação sanguínea. Como não percebi isso antes? Eu teria lutado por você. Mas, certamente, nunca teria bastado.

O convite requintado e brilhante estava trêmulo e quente na minha mão, agora gelada. O choque percorria meu corpo, um monstro urrava por libertação dentro do meu estômago. O enjoo se propagava à medida que eu relia as palavras bonitas em sépia.

"Você está cordialmente instaurado a comparecer, no dia 27 de outubro de 2012 à celebração matrimonial de Magnus Muller e Elenita Rodriguez, etc...".

Não podia mais. Não conseguia. Meu café da manhã parecia gritar nas paredes da minha garganta, lutando por sair. Peguei alguns comprimidos do meu Dramin e engoli a seco, não me importando com o atrito incomodo que se instalava garganta a baixo. Aliás, nada mais fazia o mínimo sentido. Tudo bem, eu entendo que depois de um tempo do término de um relacionamento o rumo natural da coisa é procurar alguém pra nos fazer esquecer. Ah, eu bem sabia disso. O bom mesmo é sair, aproveitar a vida recheada de possibilidades. Ter relações fugazes e tão profundas quanto um pires. Tudo bem. Tudo bem mesmo, pois eu também fiz isso. Mas casar? Casar parecia demais. Demais pro que os meus nervos podiam suportar.

Aquele convite dourado representava o fim de um era, o apocalipse das minhas esperanças mais vergonhosas, o crepúsculo dos meus dias de profundo aguardo. Eu não estava chorando por ele. Não, não mesmo. Eu estava chorando, percebi, pela morte de uma parte de mim que ainda o amava. Não era apenas um convite, era uma arma letal, uma bala de chumbo perfurando cada centímetro de uma alma criada especialmente para espera-lo. Como isso tinha acontecido afinal? Se eu não tivesse ido embora, ele teria lutado por mim. Certo? Agora posso ver com clareza que nunca houve reciprocidade. Meu pretérito jamais se importara. E, se houve alguma espécie de reconhecimento, ele fez muito bem o papel de indiferente. Mas casar, meu amor? Casar? Não, isso não parecia certo. O que eu estava esperando, afinal? Que as coisas se resolvessem da noite pro dia, depois de cinco anos?

O relógio ainda estava retumbando num tiquetaquiar irritante, vindo da cozinha. Agora, a clareza se tornava mais nítida. Ele nunca lutara por mim. Sempre fora eu, a guerreira impassível. A que teria virado o mundo de cabeça pra baixo por ele. Mas e ele? Ele ia casar. Ele ia casar com alguma sonsa que não se importava nem metade do quanto eu tinha me importado. Com uma dessas aí que talvez nem o amasse. E não me venham com contradições, por que eu estou muito bem com todo o meu choque e raiva. Ela nunca vai amá-lo e pronto. Esse é o meu conforto. Ele não vai ser feliz, por que não serei eu. Simples. Entende? Ele não vai ser feliz. Grande casamento de merda, eu também sabia fazer convites dourados e alegres como aquele. Claro que eu sabia. E um dia ainda ia fazer e ia carregar o nome de algum cara incrível e maluco que me amasse como a sonsinha la nunca o amaria.

As imagens voavam soltas pelo meu quarto, agora parecendo absurdamente solitário. Lá estávamos nós, apaixonados. Vinte e tantos anos e muitos sonhos. Vinte e tantos anos e muitos hormônios. Era incrível e lindo e eu te amava. Eu jurei que sempre te amaria. Eu larguei tudo pra ficar do teu lado. Tu largou tudo pra ficar do meu lado. Nós éramos como aqueles casais apaixonados dos filmes que fugiam juntos e ficavam felizes e lindos para sempre. Olha que ironia, agora eu rio com escárnio pra aquela cabecinha de vento com os dreads na cabeça. Ta achando o que minha filha, que ele vai casar contigo? Não, ele vai casar com outra e ainda vai te convidar. É isso aí. A gente ama tanto que um dia acaba e se torna casamento alheio.

Claro, qual futuro eu esperava? Não haveria. Tudo que houve foi uma barriga grande e uma filha linda, só isso. Tudo o que houve foi um elo de ossos e carne que nos prende pra sempre, ainda que não tenhamos vontade. Lá estou eu, com meus vinte e tantos quase trinta anos, com as malas na mão e a criança na outra, cheia de coragem e dor, carregando anos de uma prisão domiciliar nas costas. Lá está você, inerte. Eu saio pela porta, morrendo de vontade de ouvir você me pedindo pra ficar. Eu saio pela porta e me decepciono quando não sinto seus braços fortes me segurando e impondo nosso futuro. Lá está você, apenas observando, de longe. Anos de promessas e tudo que eu posso ver na sua força e na sua masculinidade é uma irônica impotência. Anos de amor e tudo que eu posso sentir é uma solidão esmagadora. A gente segue em frente, eu segui em frente. É só isso que se tem pra fazer: seguir em frente.

Você nunca me pediu pra ficar, nunca me telefonou, nunca se lamentou. Você só ligou de vez em quando, quando batia uma certa tristeza na vida. Só lembrou de mim quando sua vida cheia de trabalhos e mulheres te dava uma folga e precisava de alguém que te puxasse pra realidade. Você sempre precisou de alguém que desse um impulso, de alguém que sentisse mais do que você poderia imaginar ser possível sentir, de alguém que te ouvisse chorar e ainda assim te achasse sexy. E sempre fui eu. Mas, por algum motivo, você nunca lutou por mim. Você simplesmente fechou a casa, pegou suas malas e foi pro norte enquanto eu rumava, despedaçada, para o sul. Você vai casar e eu ainda te amo. Mas você nunca lutou por mim.

Eu teria lutado por você. Mas certamente, nunca teria bastado.

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