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domingo, 4 de novembro de 2012

No cinzeiro, vários cigarros apagados...

Os cigarros amontoam-se uns sobre os outros no pires sujo de café. A cama de casal, desarrumada, guarda debaixo de si um par de alpargatas velhas e a Playboy do mês de outubro. Perto dela, o relógio caído marca sete horas. Frente à janela, na escrivaninha, pó, rascunhos escritos à mão, papel amassado, folhas em branco. Numa parede do quarto, afixados ao mural de isopor, a conta vencida do aluguel e o aviso de corte de luz. Na sala, a bolsa de couro e a mala preta (dentro dela tênis, blusão, calcinhas, jeans, camiseta, sutiã, camisa) dividem o espaço sobre o sofá com o casaco azul e a ultima VEJA.

Nesse momento, ouve-se um barulho na porta e Madalena invade o espaço silencioso e corrompe meu resguardo, meu rancor. O cabelo, outrora longo e volumoso, cai em fios bagunçados sob aquela tez enrugada. Sinto, de súbito, vergonha do meu desleixo involuntário, do comprimento da minha barba, da conta vencida que ameaçava o imóvel outrora nosso, da ultima veja jogada no chão que, a propósito, eu não lera. O contraste de nossos espíritos era latente, maçante, grotesco. A personalidade dela deixara de ser contida, a expressão deixara de ter o reflexo da educação polida. Por algum motivo que eu me negara, resignado, a enxergar, o mesmo monstro que me dilatara a vida, enaltecera a dela. Meu descuido parecia uma ofensa quando comparado à delicadeza daquelas faces rosadas, daquele olhar cintilante, daquele sorriso que me doía.

- Que tu quer aqui? – Disse eu, sem paciência para rodeios ou vergonhas infundadas.

- Vim para dar-te uma notícia importante. – Disse ela, cuidadosa, como pisasse em cacos de vidro. Numa voz determinada e ao mesmo tempo temerosa. Que notícia poderia ser aquela, para fazê-la vir até mim? Que será que o infeliz tinha feito para que ela se desse ao tamanho trabalho de desgrudar-se dele por um momento e vir ter com o ex-marido louco e maltrapilho?

- Mas, antes – Continuou ela, naquele tom cuidadoso, dando passos leves em direção à sala – preciso pegar minhas coisas. Onde estão elas, Martin?

Olhava em volta perdida, desnorteada, em meio ao caos que seu antigo lar havia se tornado. O vestido florido movia-se em volta daqueles joelhos macios e, em poucos segundos, meu apartamento já estava infectado pelo perfume dela. Aquele forte, doce frescor que irradiava da pele da adúltera.

- Está ali, do mesmo modo que você deixou. - Respondi secamente. Madalena sorriu para mim, esforçando-se para parecer simpática. Eu a conhecia bem demais para que ela sequer tentasse me enganar com aqueles sorrisos e floreios ensaiados. Se seu interesse fosse mesmo em buscar suas roupas, ela já o teria feito. O que quer que essa mulher tinha pra me dizer, a amedrontava de tal forma que, ao ver-me aqui em carne e osso, provavelmente desistira de seus planos, sejam lá quais fossem eles.

- Ah, aqui está! Exatamente no lugar onde deixei! – E, pegando a mala com facilidade, ela sentou-se no sofá, parecendo distante. Olhava para o cômodo empoeirado, para os tocos de cigarro que estavam escondidos por entre as almofadas do sofá. Eu permanecia estático na minha linha segura em frente à porta. Não sabia o que dizer para acabar com aquele silencio infernal, mas por sorte, ela o fez.

- Que te aconteceu Martin? Que tu tens?

Dei de ombros, cruzando os braços para tentar impor minha lucidez.

- Nada. Sou um homem completamente saudável.

- Onde estão os teus remédios?

Por um momento, tínhamos voltado no tempo. Há alguns meses atrás, quando ela ainda se dava ao luxo de contracenar sua preocupação por mim. Senti vontade de esganá-la. Com que direito ela me perguntava por remédios, por saúde? Com que direito invade a casa que agora é somente minha e senta-se sobre o sofá que agora é somente meu? Que a preocupação dela fosse para os infernos, junto com os remédios que eu mais tomava. E, para falar a verdade, jamais me sentira mais lúcido e dono de mim mesmo do que naquele espaço de tempo em que estive sozinho, sem ingerir um só comprimido.

- Que te importa sobre os meus remédios, Madalena? Coloquei-os no lixo. Todos eles. Já não preciso desses enganos científicos para viver.

Ela levantou-se, parecendo mesmo muito chocada. Colocou ambas as mãos em meu rosto, como que para examinar-me a saúde. Que criatura mais infame! Que mulher mais audaciosa! Não pude mais me conter. Numa explosão de fúria, segurei-lhe os pulsos com força, tomando o cuidado de não quebra-los com o meu rancor.

- Que tu quer de mim, mulher? Que tu quer aqui?

Aqueles olhos cristalinos desabavam em lágrimas que eu não compreendia. Como se a adúltera tivesse sentimentos! Era uma atriz, uma mentirosa, uma qualquer. Por que, afinal, ela chorava?

- Não podes abandonar os teus remédios Martin. Não podes, não podes...

Falava em sussurros frenéticos, como se estivesse fora de si. Temia toda, a mentirosa. Parecia uma ovelha assustada, um animal inocente. Mas, dessa vez, a loba não me enganaria. Eu estava farto do perfume, da voz, dos pulsos pequenos que tremiam em minhas mãos. Aquele pescoço frágil estava encharcado, brilhava pálido à luz fraca do apartamento. Se eu apertasse só um pouquinho poderia dar fim àquela angustia, aqueles meses de solidão que para ela nada significaram. Não, não. Segura-te, homem. Podes acabar preso por assassinato.

- Que foi mulher? Não entendo o que se passa, não compreendo. Por que veio ver-me? Por que choras tão desesperadamente?

Ela sorria em meio aos soluços. Era uma coisa curiosa de se ver. Um sorriso doentio, uma mulher perturbada.

- Oh Martin, meu doce Martin... Quero ter certeza de que estás lúcido para ouvir as boas novas.

Soltei-a, surpreso. O humor volátil deixara-me sem reação. Uma voz ao fundo da minha consciência dizia que aquele era o momento perfeito para mata-la.

- Estou, Madalena. Estou lúcido.

Ela pegou em minhas mãos, unindo meus dedos aos dela, com um sorriso radiante naquele rosto febril e úmido. Não pude me mover, senti que aquela informação seria crucial para o nosso destino.

- Martin, eu estou grávida.

Por um breve momento, o chão desabara. Grávida. Então a desgraçada havia feito a bondade de contar-me suas alegrias para com o outro? Que ela queria? Sapatinhos de bebê? Não me contive. Sem enxergar direito, tomado pela cólera e pelo instinto, a estapeei. Meu punho batera com força naquele rosto pequeno e ela recomeçara a chorar, pedindo que eu parasse. Não lhe dei ouvidos.

- Cala-te mentirosa! Monstro! Cala-te adúltera imunda. Eu hei de dar fim à tua existência agora mesmo.

Do nariz pequeno, sangue puro escorria. Ela cambaleava pela casa, dizendo mentiras, gritando meu nome. Eu não ouvia. Estava feliz, sentia-me pleno. Agarrei-lhe pelos cabelos e a joguei contra a parede do quarto.

- Martin, pare! Pare tu não entendes. Pare!

- Cala-te maldita!

Estrangulei-a com força e fervor. Ela morria lentamente nas minhas mãos. Os pés se debatiam no ar, os punhos pequenos batiam nas minhas costelas, as unhas arranhavam em vão. Até que, por fim, ela entregara-se à calma mórbida. O corpo sem vida caiu em meus braços e eu a envolvi em um abraço carinhoso. Madalena era bela, tanto viva quanto morta e eu jamais amara outra mulher que não ela. No seio inerte havia um papel reluzente que eu, durante minha fúria, não notara. Resignado, roubei-lhe o que, percebi um pouco mais tarde, era um bilhete.

" Querido Martin, se você estas a ler isso é por que a coragem fugiu-me do espírito e deixei-te por escrito o que, aparentemente, não pude falar: A razão mais recente da minha felicidade.

Entendas que, na minha posição, não cabe-me mais do que surpresa. Sei que não mais estamos juntos e que tu agora podes estar feliz sem mim, mas um acontecimento desses sempre deixa a gente meio fora de si.

Espero um filho, Martin.

Um filho que carrega nas veias o teu sangue! Um bebe que nosso amor, num passado recente, gerara. Oh, agora podes entender a minha covardia.

Bem sabes que sou medrosa, que sou inconstante e apaixonada. Às vezes até mesmo infantil. Mas serei mãe, Martin. Mãe do teu filho. Não mais estamos juntos, sei disso, mas não posso negar a origem da criatura maravilhosa que agora cresce em meu ventre.

Não mais o aborrecerei com reflexões românticas, sei que gostas de ser direto, portanto aqui me despeço. Sabes onde me encontrar, se assim o julgar necessário.

Sempre tua, Madalena".

Entreguei-me à convulsão repulsiva que aquelas palavras haviam me causado. A loucura estava intacta em meus sentimentos, bem como a consciência de minha monstruosidade. Nos meus braços, a mãe assassinada de um filho amado que jamais nasceria. O filho do homem que acabara de assassiná-lo.


 


 


 

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