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quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Vingança

As gotas de chuva se acumulavam como flocos de neve no tecido recém lavado da minha roupa velha. Meus ossos pareciam ranger como engrenangens antigas, conforme meus passos aceleravam. Minhas galochas batiam nos poços de água, denunciando o barulho da minha corrida aterrorizada. Eu podia sentir um formigamento atrás da orelha, onde os dentes dele tinham cravado. Você precisa de sangue, dizia a voz na minha cabeça. Não, não, eu não preciso não. Eu não sou como eles. Eu não sou um monstro. Deus, o que eu tinha acabado de fazer? Não pense, não pense. Se você começar a pensar de novo, vai acabar se perdendo. Ou servindo de taça de bebida para ele. Ele. Quem era ele? Eu podia jurar que o amava até ontem. Eu podia jurar que o conhecia, até hoje. Eu podia jurar que morreria por ele, até dez minutos atrás, quando os dentes dele cravaram no meu pescoço de uma forma dolorida e prazerosa. Eu o desejava. Eu queria que as mãos dele tocassem nas minhas partes proibidas, onde ninguém mais poderia tocar. Afinal, ele já tinha tocado no meu coração. Não tinha? Eu entregaria minha alma a ele. Agora eu podia entender. Como pude ser tão burra? Não era amor. Nem paixão. Nem desejo. Era compulsão. Pura, simples, mortal. Compulsão. - Você não pode se esconder para sempre. Sabe disso, não sabe? A voz dele estava mais próxima do que eu esperava. Meus pulmões estavam doendo, me faltava o ar. Deus, como pude ser tão burra? Como pude... - Ah achei você! Os dedos dele estavam cravados no meu pescoço de novo. Como mármore. Como gelo. Eu senti um arrepio na espinha. Algo no modo como as gotas de chuva caíam com lentidão em meu rosto, dizia que aqueles eram meus últimos minutos como humana, como viva, como pensante. E minha mãe? Como ficaria minha mãe? Como ficaria Marrie, minha irmãzinha? E os meninos da escola que não tinham me conhecido? E aquele livro que eu nunca escreveria? Por que, antes da morte chegar, não podemos ter um aviso prévio, com formalidades e um baile de despedida? Só isso que eu queria: Uma despedida. Saborear o gosto da vida só mais uma vez. Só isso. Mas era tarde demais. Eu vi a sede dele no fundo daqueles olhos sem pupilas. Eu vi a minha própria falha, simbolizada em vermelho naqueles dentes afiados. Meu sangue, meu próprio sangue na boca do monstro que eu amava. Por que é assim, não se deixa de amar de uma hora pra outra. Ele estava me matando, e eu ia morrer como aquela que foi apaixonada por seu assassino. Eu ia morrer como uma traidora. Os dedos dele me puxaram para mais perto e tudo que eu senti foi uma dor latejante na garganta. As luzes acabaram. Não haviam gotas de chuva, nem cheiro de rua molhada, nem barulho de carros distantes. Não havia desespero, nem amor, nem traição, nem tristeza, nem saudade, nem medo. Havia um eco distante, como se minha alma gritasse do infinito. Eu morri naquele dia. E voltei, para matar o vampiro.

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