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quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Aquilo Que Eu Sei

Tem dias que acordo com uma vontade imensa de chutar a vida. Chutar tudo pro alto e depois dar risada. Como quando eu era criança e montava a casinha da Barbie no meio do quarto, só pra depois ter o prazer de quebrar tudo de novo. Só por que minhas construções geniais de lego nunca duravam e, no fundo, eu queria mesmo era brincar de King Kong. Só por que, no fundo, eu queria era chutar a vida inteira e continuar rindo, como uma telespectadora de fundo. Alguém alheio que só intromete o dedo pra atrapalhar e depois se diverte com a desgraça alheia. Eu era doida. Gostava de bagunçar, destruir, quebrar, cair, machucar, sangrar, doer, comer, gritar, chutar. Tinha o diabo no meio do corpo. Mamãe sempre disse que eu era inocente. Que criança tem a alma salva até os seis anos de vida. Que criança não sabe o que faz. Eu tinha alma de Lolita, queria agarrar o tio do picolé. Era um homem bonito, o tio do picolé. Eu queria quebrar a cama dos caras mais velhos e poder olhar no buraco da fechadura o que é que eles tanto faziam com as mulheres lá dentro. Eu queria poder destruir qualquer resquício de simples alegria por perto, pela minha alegria As pessoas eram esquisitas demais pra mim, engraçadas, burras. Eu sempre soube o que elas não sabiam que eu sabia. Eu te vi hoje e lembrei disso. Por que você não sabia que eu te vi quando você me via. Você não sabia que eu sabia que você queria me ver, mas é tão burro como todas as outras pessoas do mundo, que achou melhor fingir que não viu e virar pro outro lado pra que eu não soubesse que era você e que queria me ver. Mas eu sei, eu sei de tudo. Essa é a sua tragédia, a tragédia do tio do picolé, a tragédia da minha mãe, a tragédia daquele grupinho de meninas que não quer mais minha amizade. Eu sou diabólica. E sempre sei daquilo que as pessoas acham que eu não teria como saber. Chego no meu trabalho, respiro bem fundo aquele cheiro de papel envelhecido. Você poderia pensar que eu amo o cheiro de papel envelhecido, e talvez ame mesmo, se for um dia normal com dezoito graus de temperatura e lápis preto no olho. Hoje não. Hoje eu quero só chutar tudo. Por que hoje faz vinte e oito graus la na rua e não parece certo, já que estamos no meio de agosto, que fica bem no meio do inverno, que fica bem no meio do meu equilíbrio. E sem equilíbrio eu volto a ser criança, volto a ser lolita, volto a querer o tio do picolé, volto a saber dos outros que acham que eu não sei de nada sobre o que eles sabem. Por que hoje, eu não tenho lápis preto no olho e o papel parece muito intoxicante. O telefone toca, a morena baixinha atende. Ganha cinco mil, a desgraçada. Só pra ser boa em computadores e telefones. Aliás, nem precisa ser boa, basta passar numa prova medíocre. E eu, que me acho tão boa, não ganho nem metade. E eu, que sou tão equilibrado me rasgo. Algo nas minhas entranhas se corrompe. Você não sabe que eu sei que você me via. Você não sabe, você não sabe, você não sabe. E aquela música de cinco anos atrás começa a tocar de novo na minha cabeça, minha inspiração volta, você não sai do meu gravador interno dentro do microchip instalado no meu cérebro. Penso que nada nessa vida vai mudar, que sou inconstante e nem me lembrava mais dessa palavra, que sou idiota e perdi a vida, mas se estou morta e continuo viva então devo ser imortal. E não compreendo. As meninas me olham, como se sentissem medo. Elas sabem. Elas sabem que eu sei o que elas acham que eu não sei. Meus ouvidos são aguçados, elas sabem. Estagiárias de colarinho branco, metidas em seus processos e iphones rosados. Eu sou uma delas, mas tenho algo a meu favor: Elas não sabem que eu sei o que elas acham que sabem. Elas não sabem que a mesa do cara que trabalha do meu lado é sensual e me acende os nervos. Você não sabe que o cara usa aquele mesmo perfume e me dá bom dia no mesmo tom e diz coisas doces com a mesma ternura e faz de conta que não vê com o mesmo cinismo. O cara da mesa ao lado se parece com você, mas não sabe. A ironia das coincidências que me atropelam todos os dias,e ele acha que eu não sei. E sei que ele não sabe. Assim como você. A verdade é que a minha criança que é meio ninfomaníaca e meio freira, queria muito ir estudar em alguma instituição religiosa, servir à espiritualidade, largar tudo em busca do “eu” budista, parar de comer empadinhas de frango e largar do computador pra viver do ar e da meditação eternas. Queria muito jogar os processos no chão, chutar os compromissos pro alto, rasgar as roupas do cara, mandar beijos para a chefe do departamento, vestir aquela lingerie rosa claro com rendas inocentes e uma costura promíscua, fazer um swing. Ao invés disso, ganho meus dias enumerando papéis, processos interminváveis de uma justiça que não reage: É como morrer anestesiada. Quarenta e sete, quarenta e oito, como seria se eu tirasse as roupas agora, quarenta e nove, cinqüenta, a vida parece mesmo meio sem sentido, talvez eu vá ao shopping depois do trabalho se der tempo, cinqüenta e um, cinqüenta e dois, mas e se ele realmente tiver me visto, cinqüenta e três, e se ele soubesse que eu estou com aquele sutiã roxo, cinqüenta e quatro, concentre-se, cinqüenta e quatro, droga errei de novo, risca, risca... Minha concentração se vai nas páginas repetitivas de um trabalho que se baseia na mesmice. Meu dia se esvai em compromissos que me sugam a alma, e no fim tudo o que sobra de mim são os delírios meio violentos, meio românticos. No fim sou eu na minha cama, abraçada com um sapo de pelúcia que tem três metros, perguntando a Deus se ele existe mesmo e por que é que eu ainda não ganhei na MegaSena, por que é que eu escrevo essas coisas maldosas, por que é que a vida é tão estranha de ser vivida, por que é que ainda não fui pra índia ou para um clube de golf. No fim sobra eu e as minhas sobras do que um dia você conheceu por inteiro. Mas você não sabe, você não sabe...

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