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sexta-feira, 6 de junho de 2014

Despedida

Está chegando a hora de ir embora. Sei disso, mas meus passos continuam imponentes, quase como se vivessem por si próprios. A vida é uma coisa muito engraçada quando você para e pensa sobre ela. Tipo quando você começa a trabalhar em um lugar por muita sorte ou quando você faz amigos que realmente valham a pena por puro azar. Quando você passa a andar pelas ruas mais bonitas da cidade inteira todos os dias e nunca se cansa de admirá-las. Quando a longa escadaria da igreja da Nossa Senhora das Dores passa a ser tão rotineira quanto os paralelepípedos que rondam os prédios históricos do velho serviço militar. Ou tipo quando você desenvolve um talento aguçado para crítico de restaurantes e tem um bloquinho de notas mentais com cada nome anotado com seus devidos prós e contras. Tipo quando você passa a ser praticamente vizinha da usina do gasômetro e visitante assídua do Cais do Porto. Ai, Deus. O Cais do Porto. Sim, a vida pode ser bem engraçada quando você começa a prestar atenção nos pequenos detalhes. O Cais do Porto, palco de algumas das minhas melhores lembranças, simplesmente foi fechado, trancafiado a sete chaves por  um interesse privado em fazer dinheiro em cima dos velhos depósitos de armazéns da historia de Porto Alegre. Uma coisa dessas não deveria acontecer. Simplesmente não deveria. Não parece certo que o dinheiro seja mais importante do que as milhões de memórias guardadas naquele lugar. Assim como também não parece certo que exista uma lenda sobre um negro escravo que ronda a santidade das escadas da igreja, mas é o que acontece. Você sobe três lances enormes de escada só para sentir-se no topo. E daí se lembra que aquela linda rua na frente foi palco de milhares de execuções racistas, originárias da boa e velha dominação de classes do opressor para o oprimido. E mesmo que a historia do lugar inteiro seja um misto de desastre e amor, você continua a nutrir sentimentos por ele, que não são espetacularmente bons mas também não são desastrosamente ruins. Você simplesmente gosta desse lugar. Você gosta de ver pela janela do ônibus as árvores que continuam intactas ali perto do gasômetro. Você gosta de caminhar pelas ruas e sentir a brisa gélida que vem do rio. Você gosta do barulho de soldados gritando e carros diminuindo a marcha e pessoas caminhando. Você gosta de ir a todos os restaurantes e de ter se tornado um perito na qualidade de cada um. Você gosta de ser conhecido pelas ruas, de dar bom dia e ter a segurança de que será respondido, ainda que mentalmente. Você simplesmente gosta, não por que deve ou por que aprendeu, mas por que é assim que funciona o rumo natural das coisas,  aquele costume suave de que tanto se esquecem os amantes depois de casados. É uma paixão amena, quase um assobio, que não deixa você em paz. Desistir dessa convivência diária com o ambiente, as pessoas alheias, o canto dos pássaros aleatórios, os gritos pontuais dos soldados... Dói. Dói de uma maneira quase bonita. Não que eu seja masoquista. Mas a dor é uma saudade alegre que se instalou no meu coração. E olha que eu ainda nem fui embora, mas estou em processo de despedida. Chega uma hora na vida, em que você menos espera, que nutrirá sentimentos inesperados por ocasiões inesperadas. E você vai ter que dizer adeus para tudo isso e saber lidar com a vida, dando continuidade aos sentimentos e ao gigantesco círculo vicioso que são as relações humanas. E vai doer. Mas não vai ser ruim, vai ser bonito. Ir embora de uma situação boa chega a ser gostoso de tão bom. É a alegre dor de se despedir sem estar, de fato, despedido. Você vai partir e deixar uma parte do seu coração ali, influenciando as energias, o canto dos pássaros, movimentando as ondas sonoras dos gritos dos soldados, badalando o sino da igreja às dezoito em ponto. Você vai embora, mas a dor é tão bonita, que você fica.

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