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segunda-feira, 23 de junho de 2014

In Memoriun

Os olhos dela tinham a cor do pôr-do-sol. Talvez quando a morte chegasse não fosse tão triste. Eu poderia manter o sorriso dela nos meus olhos cerrados. Dizem que temos de aproveitar o tempo. Mas o tempo corre o tempo inteiro. No fim somos nós querendo tempo para poder ter mais tempo. E tudo que eu consigo pensar era que ela tinha nuvens nas sobrancelhas. Eu a ouvi cantando e confundi sua voz com as trombetas apocalípticas dos serafins. Seus pés eram tortos. Lembro de quando ela pegou na minha mão e disse que de-veríamos apenas ser felizes. Eu sorri para ela. Eu queria ser feliz também. Mas a felicidade é tão orgulhosa quanto uma mulher difícil: Você tem que correr atrás dela e provar que a merece. Então eu corri. Bom, nós corremos. Ela dizia que os pássaros tinham mais inteli-gência do que todos os nossos professores juntos. Eu concordava. Era embalado por aquela alma que era tão mais velha que a minha. Era desnorteado por aquela menina que tinha a minha idade, mas o coração pesado. Esse talvez tenha sido o meu maior erro. O meu maior desespero. A coisa mais feliz na vida de uma criança é ser aceito. Ela me aceitava. Então eu apenas me fundi nos cachos dourados do cabelo dela e nunca mais me senti sozinho. Éramos inseparáveis, eu e aquela menina. Quando somos crianças, sentimos o cheiro doce do ar, confundimos nuvens com algodão doce, lambemos as gotas amargas da chuva. Crianças olham para a magia, com curiosidade e inocência. Eu a olhava como se estivesse encantado. Aqueles olhos pareciam ondas, me car-regando em passos leves pela maresia. Quando ficamos velhos, voltamos a ser cri-anças, mais enrugadas e mais machucadas. Mas talvez, se eu apenas conseguisse manter o som da risada dela nos meus ouvi-dos doentes, eu poderia dizer que tive uma morte feliz. Não se sabe o que acontece do outro lado. Não se sabe quem vamos encontrar. Mas talvez, quando eu finalmente souber, eu possa dizer que ela foi o anjo que me deu o passe livre para o paraíso. Quando você não tem mais nada no que se agarrar, quando você percebe que simplesmente não pode mais voltar atrás, a vida adquire uma nova tonalidade. Minha existência recebeu essa bruma misteriosa, essa fumaça densa que se espa-lhou pelo passado e me fez enxergar ao amor com novos olhos. Lembrei então do meu primeiro dia na praia. Aquela água azul, tão imensa. Não haviam tijolos, nem muros, nem cercas com arames. A sensação de liberdade que o vento proporciona. A areia macia, tinha a cor da pele dela. A sensação quente nos pés, quase como se a terra nos quisesse puxar de volta para dentro do barro. Lembrei de quando vi a neve cair pela primeira vez. Os floquinhos de gelo caindo no meu nariz. O anjo que fez outro anjo no chão. A menina dizia "Venha, brinque comigo". E eu ia. Tinham então três anjos no chão. O meu, o dela. E ela. O primeiro beijo. Foi dela. O primeiro amor. Ela. Minha mãe era uma senhora gorda e meio carente. Amorosa demais, mas dispersa também. Meu pai era bom com sapatos e sorvetes. Gostava, principalmente, de tomar sorvete na sapataria. Meu primeiro sorvete foi dele. Meu primeiro luto também. Então você fica velho, adquire experiência. A magia não existe. As pessoas vão embora. Os países mudam. As guerras matam. Os casais criam. Você procura por dinheiro como se viver fosse algo renovável. O que é muito triste de se acreditar. Quando você chega na ala terminal do hospital, percebe que passou metade da vida preocupado com besteiras que não fazem diferença. Passou metade da sua existência simplesmente vagando pelo mundo, acreditando que seria alguém "maior" ou "melhor". Gastou metade do seu dinheiro com coisas que não lhe engrandecem, gastou metade da sua energia com pessoas que não sentem absolutamente nada por você. Arrependo-me de muitas coisas, mas ela não está em nenhuma delas. O amor, se não fosse tão incrivelmente maluco, poderia ser a nossa cura. Mas talvez, só talvez, nós não precisemos de amor. Talvez o que a gente precisa seja de mais confiança, mais solidariedade, mais esperança. Dizem que você encontra isso na espiri-tualidade. E isso é algo que fica realmente difícil quando você adquire maturidade o suficiente para entender que as religiões são crenças disseminadas pela ignorância. E então você duvida de Deus. Você passa também a duvidar de si mesmo. Você diz "eu me entrego, eu não quero mais saber de nada". E você apenas nasce para morrer. Essa é a grande verdade da vida. Eu, você, o amor da sua vida, seus filhos, seus pais, seu vizinho corno. Todos nós não temos nenhum propósito na vida além de morrer. Nascemos com o destino lacrado. Saímos de um útero e estamos, irreversivelmente, fadados a ir para o caixão. Por isso viva sua vida de modo que, quando você der o seu último suspiro, quando você fechar os seus olhos pela última vez, quando você tentar acompanhar o terço da sua vó para entreter o medo, tenha algo bom o suficiente para acreditar. Dedi-que-se a alguma coisa, qualquer que seja ela. Beethoven deve ter pensado na sua música. Imaginado os tons que nunca escutou. Da Vinci deve ter imaginado os olhos enigmáticos de sua Monalisa. Madre Thereza deve ter agradecido a Deus por sua maravilhosa existência. Eu só conseguia me lembrar de como as rugas dela lhe caíam tão insuportavelmente bem conforme a idade avançava. Eu não conseguia ver nada além disso. Enquanto as sombras me envolviam e as certezas eram dissolvidas, eu a via. No fim do túnel. Como uma luz, colorida, faíscas que saiam do meu coração. Não sabia se ela tinha uma alma, se seríamos salvos. Nunca toquei nenhum instrumento. Nunca escrevi um livro. Nunca fiz um filho. Mas eu a amei até o fim da sua vida. E foi ela quem eu vi na minha frente, quando as luzes se apagaram. Tenha certeza de ter amado alguém que lhe faça sentir menos monstruoso quando você morrer. Tornará as coisas mais fáceis para você. Tornaram as coisas mais fáceis para mim.

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