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quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Coração Anacrônico

Entrei no ônibus lotado, esperando por algum tipo de compaixão matutina. Que sorte a minha, estava vazio! No reflexo das janelas mal limpadas, a imagem do meu rosto cansado, o cabelo desgrenhado, o moletom velho. Tudo bem, eu pensei. Não é como se ir pra aula fosse a mesma coisa do que ir a alguma convenção social, embora certas garotas insistissem em acreditar no contrário.

Sorrio para o cobrador. Gosto de parecer interessada e bem humorada pela manhã, dizem que um sorriso estimula o aparecimento de outro sorriso, então insisto no método. E não é que funciona? O bom rapaz sentado à minha frente sorri de volta, de forma educada. Eu deslizo pela roleta, tentando manter o equilíbrio enquanto o transporte arranca com toda a velocidade. Espera. Não foi o ônibus que arrancou, fui eu. Parada, pulsante, intrigada. O vislumbre de um azul intenso provoca a aceleração dos meus batimentos cardíacos e eu não demoro muito para perceber a presença dele. Um segundo de atenção, uma olhadela por cima do óculos fino. O suficiente para balançar um ônibus inteiro. O suficiente para balançar a minha vida inteira.

Eu não te conheço, mas aposto que a gente vai se entender muito bem da próxima vez que se topar por aí.

Lá estava ele e ali estava eu. Lá estava ele, a barba mal feita, o óculos escorregadio, o livro aberto. Lá estava ele, a ignorar a minha presença ou as nossas coincidências. Minha típica fraqueza feminina fazia questão de aparecer nos piores momentos possíveis, trazendo um sorriso levemente orgulhoso naquele rosto pincelado por gregos devido à minha falta de bom senso. Que eu tinha na cabeça quando sentei ao lado dele? Levantei, troquei de lugar, corei. Ele continuava inerte, no banco da frente. Os fios do cabelo castanho surgiam em voltas assimétricas logo acima da nuca, a pele parecia arrepiada. Ele sentia frio. E essa constatação só serviu para que eu imaginasse coisas inexprimíveis.

Outro vislumbre azul, outra movimentação anormal do motorista. Não, não era o motorista, era eu. Aqueles olhos azuis eram como ácido jogado na minha visão turva. Ele sorriu de novo, agora parecendo despreocupado.

Eu sorri de volta, tentando não parecer maluca.

E o pior é que eu pareci.

Coloquei o rabo entre as pernas e desci na parada anterior à dele.

Não tenho mais idade pra suportar amores impossíveis.


 

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