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quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Maria

Os olhos castanhos dela me encaravam através do vidro de cristal. Estávamos frente a frente, estudando a perfeita igualdade de ambas. Mas havia nela uma jovialidade que não me pertencia, um certo prazer nos olhos, um brilho de inocência nas pupilas negras. Recusei-me a continuar olhando para aquele rosto estranho: era demasiado instigante pra mim. Mas ela, teimosa, não desviava o olhar. Sorria para mim com os lábios travessos de quem planeja alguma arapuca e se vê satisfeito desde o pânico precoce na expressão da vítima. E, obviamente, eu tinha esse pânico precoce. Medo do que ela poderia me mostrar ou fazer. Aliás, onde estavam as pequenas rugas dela que não ali junto das pontinhas dos olhos?

Maria, Maria apareça aqui logo, preciso de tua ajuda. Onde diabos aquela negra se enfiava quando se precisava dela?

"Que quer de mim, senhora?" Maria apareceu, de sobressalto, com as saias sujas seguradas pelos dedos finos. Olhava-me com um misto de impaciência e curiosidade. Era uma boa criada, pena que às vezes cismava em pensar demais.

"Quero que me alcances o rímel."

Dito isso, ela prontamente o pegou na cabeceira que estava a 45 centímetros de mim, tentando esconder uma careta de decepção.

"Posso voltar senhora?"

Olhei de novo para o vidro de cristal na minha frente. Era tão pequeno, que eu podia segurá-lo com as mãos de modo que a vista de meus próprios olhos se tornasse mais clara, mais acessível. Engraçado isso, a gente tentando ficar mais perto dos nosso próprios olhos. Uma coisa bem complicada de se pensar, quando se para realmente pra pensar. Mas eu não sou uma dessas mulheres que se casam e ficam a vida inteira pensando em coisas vãs. Isso é coisa de negro fazer. E se a negra na minha frente tomasse conhecimento das minhas dúvidas, talvez as roubasse pra si. O que não era uma má ideia.

"Senhora, eu posso voltar para a cozinha?" Repetiu ela. Maria era muito impaciente às vezes. Não sei que que me deu na cabeça quando fui compra-la.

Mas onde eu estava? Ah, sim, nas rugas.

Olhei impaciente para aquele vidro estranho que chamavam de espelho. E a menina continuava lá com aquela boca vermelha e sorridente. Ah e que dentes! Em pensar que se parecem tanto com os meus... Então me veio um entendimento dentro da alma: Ali era o meu espírito! Sim, sim, meu espírito! Oh que descoberta a minha, sou genial, sou genial, sou genial! Será que mulheres podem ganhar um prêmio de gratificação pela inteligência?

"Senhora, eu não quero parecer impaciente ou mal educada, mas se eu não voltar pra cozinha agora, a comida vai secar e talvez pegar fogo..."

"Já que esta tão apreensiva, então vá. Vá, faça suas coisas de negra e depois volte. Quero lhe mostrar uma coisa, uma coisa que acabei de descobrir. Vai negra imunda, vai, mas não se esquece de voltar."

E ela foi.

Maria sempre foi uma boa criada, mas ainda era impaciente e mau educada também.

Mas essa menina do vidro era eu? Ou o espírito da menina que me encarava era meu espírito mais jovem? Ou eu que tinha rejuvenescido?

Oh, oh outro entendimento! Sou tão genial... Com certeza isso aqui não é um espelho comum. É um espelho de rejuvenescimento. Albert Einstein não sabia de nada! Oh que filosofia tola aquela que se baseia nos cálculos. Nunca precisei de cálculos e no entanto sou um prodígio da ciência, da astronomia, da medicina, das artes e de todas as ciências do século! E cadê aquela negra pra me aplaudir?

"Ô Maria vem cá que eu tenho que te mostrar uma coisa! É meu espírito Maria, é meu espírito!"

Negros são todos malucos. Sério mesmo. Depois que vi a Maria entrando no meu quarto com aqueles olhos esbugalhados e os dedos finos na saia suja e o cabelo emaranhado num coque mal feito, pude perceber que era louca. Louca mesmo. Até despedi ela depois daquele dia. Ora, pois a doida da Maria veio me dizer que sempre via espíritos e que sabia que o meu estava ali. Que burra, que burra... Ah pobre negra... Que será que ela fez pra ser tão burra?

Só eu via meu espírito porque meu espírito estava dentro do espelho. Tu não vês negra tola? Eu perguntei. E ela só disse um "Não, senhora". E daí eu mandei ela embora. Ela ficou chorando dizendo que não tinha pra onde ir. Mas a verdade é que a Maria sempre foi muito impaciente, e muito maluca e muito ambiciosa também. Ela veio me dizendo que aquilo era um tal de reflexo da luz e que eu só estava olhando pra mim mesma. Que absurdo! Ela queria roubar minha ideia, disso eu tenho certeza. Mas é que a Maria sempre foi muito invejosa e muito metida a inteligente. Daí eu fiz uma coisa que só mulheres ricas e prodígios que nem eu fazem: Quebrei o espelho. Fui ali, bem no meio do problema. Aquele espelho horroroso e a Maria ensanguentada. Ah Maria... Que negra mais assustada. Foi só uma batidinha Maria, só uma batidinha.

Hoje eu entendo porque ela foi parar no hospício. Era doida a negra. Ficava inventando histórias de espíritos e de reflexos e de comida e depois ainda tentou tirar a própria vida. Que que ela tinha de deixar a cabeça embaixo do meu espelho de propósito? Quebrou o espelho e quebrou a cabeça. E foi pro hospício. Até hoje não entendo. E nem quero, por que pensar essas coisas é coisa de negro. E eu sou branca. Com sangue azul e tudo. Sério mesmo.

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