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terça-feira, 4 de setembro de 2012

A maluca do 529

Jamais amei tanto alguém quanto penso que amo agora. O quão perigoso isso pode ser? Aos olhos de Teresa, tudo parecia incorreto. Ela não compreendia. Disse-me para esquecê-lo, mas como poderia? O garoto não cansava de perseguir-me campos a fora. Tão mau vestido e mau educado e mau cheiroso e mau tudo quando poderia ser. Ele era o mau em pessoa, Teresa dizia. E eu, eu deveria ficar bem longe dele. Mas talvez seja algo criado no âmago da minha imaginação, essa febre, esse amor. Papai se ri de mim, se falo disso. Dizem que é feio e raro. E que, no fundo, não existe. Dizem que é uma técnica que os escritores antigos criaram para chamar a atenção de donzelas entediadas e lucrar com suas historias irreais. Honestamente, não posso acreditar nisso. Se o que eu sinto é uma doença como dizem, então que sentido há para se viver?

Teresa observa-me, de canto de olho, enquanto observo, de canto de olho, ao rapaz que agora está distante. Ele não observa ninguém, e nele acaba o estranho ciclo. Mas por ele, recomeça minhas angustias. Será que estou ficando louca? Não quero acabar como a Dany do terceiro andar que fora internada semana passada, dizendo que morria de amor. Ainda posso ouvir os gritos que saíam pelas portas do fundo de seu apartamento, o qual, infelizmente, dava direto para a janela do meu quarto. Dany gritava, esperneava, dizia coisas sem sentido. Dany foi para o hospício e seus pais se separaram logo em seguida. É assim que funciona por aqui: Pessoas se casam, tem filhos e se separam assim que os filhos vão embora para estudar ou trabalhar em algum lugar distante como a Rússia ou o Japão. Não entendo qual é a lógica, mas nunca vi amor nenhum como os que existem nos livros. Pelo menos não até senti-lo. Ou achar que o sinto. E, agora, sinto medo de ter enlouquecido.

- O que fofê eftá olhando?

Aquela voz esganiçada tira-me do torpor como um sino de igreja mal batido. Teresa era minha vó, e já passava dos setenta anos. Era meio surda e faltavam-lhe dentes. Por isso falava tão alto e tão errado ao mesmo tempo. Tentei pensar rapidamente em uma desculpa, sem muito sucesso.

- Para a macieira.

Duh. O menino estava embaixo da macieira. O cabelo louro reluzia sob o sol, a pele bronzeada combinava perfeitamente com seus traços. Era lindo. Meu Deus, como era lindo.

Ela fechou os lábios enrugados, fechando-se em uma carranca de desaprovação. Pegou-me pelo braço em um aperto forte e trancou-me em meu quarto sem que eu pudesse sequer negar.

- Vofe va fifar ai ate pafar de penfar effaz coifas. Enfendeu?

Fiz que sim com a cabeça, sem muita vontade de discutir novamente. E, também, sem muita vontade de acabar sendo internada como louca. Vovó dizia que eu deveria me manter longe dos meninos, por que eles tinham o estranho costume de despertar nas mulheres seus dragões. Era assim que chamavam aquele calor que me subia pelo corpo inteiro quando seu olhar retribuía o meu envergonhado. O menino havia despertado o meu dragão, e temia que fosse tarde demais para dar ouvidos a quem quer que fosse que tentasse me dizer o contrário.

Corri até o parapeito da janela, tentando manter meu olhar em suas costas nuas, quando ele, como que queimado pela minha intensidade, virou-se. O brilho dos olhos verdes queimaram minhas bochechas. Não tive forças para desviar-me e então tudo foi muito rápido. Em um minuto, ele estava no meu quarto. Sei que gritei. Sei que ele apertou-me com força contra a parede. E, do mais, não lembro. Sorrimos, conversamos. Meu pai entrou no quarto, sedaram-me. O garoto gritava, seus pés chutavam o ar. Minha vó sorria, de uma forma assustadora. As gengivas proeminentes debatiam-se com prazer contra a língua envelhecida enquanto as drogas corroíam minhas veias. Senti vontade de gritar, de correr, de salvá-lo. Mas não pude. Estava inerte sob o chão de mármore. Algumas mãos levantaram-me, deram-me uma injeção. De resto, não lembro.

Quando acordei, no outro dia, estava em uma sala branca. Paredes de vidro separavam-me de outras meninas, igualmente nuas. Um pesadelo para uma vida construída em cima de puritanismos. Dany olhava-me, encantada. Todas, na verdade, olhavam-me da mesma maneira. Foi quando, por um susto, percebi que sangrava. Minhas pernas tremiam. Será que haviam me machucado? Será que eu estava com hemorragia? Foi então, que tudo ficou muito claro. O sangue... O sangue havia descido. Por isso o calor. Por isso o dragão. Agora eu era uma mulher feita. Mulher feita e louca. E apaixonada.

As regras diziam que ninguém poderia manter presa uma mulher feita. E eles me soltaram. Disseram-me, nas ruas, que anos haviam se passado desde que a maluca do 529 havia sido pega. Disseram-me que a menina gritava e chutava ao vento e que havia um bonito lenhador no seu quarto. Disseram-me que a velha louca havia morrido e, com suas bruxarias, levado o filho junto. O lenhador louro, havia se casado e ido pra Sibéria. Pintara o cabelo, trocara de nome. Fiquei atordoada. Quantos anos tinha? Disseram-me que a menina tinha dez anos. E, pelas minhas contas, sete verões haviam se passado dentro das paredes de vidro. Sete verões para que meu sangue descesse.

Troquei de nome, mudei de lar, esqueci-me do garoto. E, finalmente havia aprendido que o amor era coisa de livros de donzela entediada. Nada pelo que se lutar, nada que valesse a pena ser lembrado. Nada além de uma paixão de criança que quase havia me matado.

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