Translate

sábado, 15 de setembro de 2012

A última vez

Nuvens brancas se moviam lentamente pela imensidão azul do céu. Havia um leve sopro quente espalhado pelo vento que vinha diretamente do sul. Os dedos dele estavam a cinco perigosos centímetros dos meus. Eu estava cansada de mentir pra mim mesma ou tentar parecer indiferente, mas não havia muitas possibilidades de escolha. Ele estava claramente ignorando a nossa proximidade intoxicante. Ele estava ignorando o palpitar desenfreado do meu coração frenético, ainda que eu pudesse jurar que ele também estava nervoso ou meramente incomodado com a minha presença.

- Fazia tempo que eu não sentia isso.

Sua voz parecia distante e carregada de dor. Dor disfarçada é claro. Eu não queria criar esperanças e acreditar que aquela dor se devia à saudade. Seria bom demais pra ser verdade. Embora eu não tivesse entendido sobre o que exatamente ele estivesse falando.

- Não sentia o quê?

Ele suspirou. Um suspiro pesado, magoado. Ele parecia escolher as palavras com cuidado, como em um jogo de minas: Qualquer interpretação errada poderia fazê-lo explodir.

- Isso. Essa... Leveza.

Seus olhos encontraram os meus, no exato momento em que eu conseguia entender seus sentimentos: Ele estava confuso entre gostar da minha presença e repudiá-la. Eu sabia perfeitamente como era a sensação. Também estava inundada de contradições.

- Eu entendo.

Meus dedos escorregaram pela grama, batendo de leve nos seus. Ele pareceu tremer sob o toque e se encolher, como que se dando conta do perigo que isso demonstrava. Sua expressão permanecia impassível, distante, triste. Eu não o entendia. Não havia como. Por que ele estava aqui, afinal? Se me odiava tanto, se, como ele mesmo disse, não tinha motivos para vir. Se tudo já estava resolvido e enterrado, se tudo já estava como deveria ser. Se a flecha já tinha sido lançada e não podíamos mais voltar no tempo para impedi-la de acertar em cheio a vivacidade do que antes achávamos ser amor? Não o entendia. Não podia. Era complexo demais para as minhas perspectivas femininas de realidade.

- Será que entende mesmo?

Ele me deixava confusa. Do que estávamos falando?

- Entendo. Entendo sim.

O campus esvaziava-se, estávamos em plena hora de aula tentando pôr a conversa de meses em dia. O que não era algo muito fácil, diga-se de passagem. Quando se perde o contato com alguém que antes fora muito íntimo, tudo que resta é uma fumaça insistente de desconforto. A pessoa que te conhece melhor do que todos os outros, de repente, se torna um estranho. Só mais uma das regras claras que emolduram o final de um relacionamento fracassado. Mas o que eu poderia fazer? Eu sentia sua falta. E, ainda que ele não sentisse a minha, queria tê-lo por perto.

A tarde se passou de forma alegre e estranha. Sorrimos, conversamos, criticamos. A pontinha do mundo de confiança que ele me proporcionava finalmente começava a se expandir de uma forma saudável. Mas, lá no fundo, algo estava completamente errado. Ele tinha medo de mim. Ou será que eu tinha medo dele? Não sabia, mas podia sentir o desconforto crescendo à medida que nos entendíamos. Não parecia certo me relacionar tão bem com alguém que, tempos atrás, tinha feito nascer em mim um ódio crescente pela mesma pessoa. Eu, no meu desespero por ignorar isso, agarrava-me com todas as forças em qualquer assunto que nos aproximasse, em qualquer piada que descontraísse meus músculos tensos.

A notável atração que as minhas células ainda sentiam precisavam ser aniquiladas, caso contrário, não daria certo. Eu sabia disso. Ele também sabia, embora eu estivesse certa de que não havia reciprocidade. Claro que não havia. Só eu era a maluca ali, só eu que estava maluca pra abraça-lo, só eu que sentia uma vontade irritante de chorar cada vez que percebia o quão diferente e distante ele estava de mim. Eu sempre tinha sido a maluca da história das malucas. A que sente tudo sem que ninguém possa saber de nada. A dama de ferro, pegando fogo por baixo da armadura forte de chumbo. Claro, eu já estava acostumada a ser maluca que usava a máscara da mais normal das normais. Claro.

Eu podia ter me agarrado a mais um segundo da presença dele, mas não quis. As coisas estavam indo por um rumo que eu já havia previsto há tempos atrás, e, de súbito, tudo fez sentido. O sol despediu-se no poente e a noite caiu. Minha perna dolorida protestava contra a minha vontade de permanecer caminhando com ele pelo resto da noite e, sem muita vontade, despedi-me. Aquela máscara de tristeza o encobria, superficialmente, ainda que eu tivesse a fraca impressão de conseguir tê-la quebrado com o passar das horas. E, naquele momento, eu tive a fraca impressão, a forte intuição, de que era a última vez. Era isso. Minha ultima chance. O olhei, atentamente, tentando gravar o rosto, o perfume que tantas vezes me tirara do sério, a voz que tantas vezes me acalmara, ele. Me apeguei, desesperadamente, a cada centímetro daquela pessoa que tanto representara pra mim um dia. Como num velório, quando a gente sabe que só vai ver o defunto de novo em fotos. Sem querer ser exagerada, mas foi assim. Despedi-me dele, com um aperto no coração. Uma vontade de abraça-lo, de chorar, de dizer adeus de forma bonita. Mas tudo isso só ficou na minha cabeça. A cabeça da maluca cheia de sentimentos não recíprocos. Ele calmamente disse-me tchau. Calmamente observou enquanto eu ia embora. Calmamente deu seus passos rápidos no sentido oposto ao meu. Calmamente foi embora pela ultima vez.

E eu?

Eu sorria, indiferente. Acenei um tchau nulo de sentidos. Virei-me, rapidamente, e segui meu rumo como quem não se importa e tem muitas coisas pra fazer no dia seguinte. Eu sorria, enquanto tudo dentro de mim chorava. Sem ter certeza que, aquela, seria a minha ultima chance de fingir indiferença. Sem saber que eu iria embora da vida dele pela última vez.


 


 

Nenhum comentário:

Postar um comentário