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sábado, 15 de setembro de 2012

Outrora

Realidades se chocam em uma matriz de números caindo. Milhões de pessoas que vivem enquanto pensam estar, de fato vivendo. Minha mente analisa calmamente cada uma delas: Paradas, parecem inocentes. Em movimento, são como animais selvagens. Vivo em uma selva que se auto intitula sociedade moderna. À minha direita, gente se empanturrando de hambúrguer. A maionese escorrendo pelo canto da boca ávida. Marcas de gordura nos dedos lambuzados. Litros de refrigerante caindo e manchando as calças quase limpas.

É meio-dia, a hora mais suja do dia. O sol se impõe, orgulhoso, no centro do céu, abrindo os poros sujos de quem se esconde, assim como eu. A hora em que o proletariado foge de sua escravatura e experimenta o feio gozar alimentício. Não há classe no centro poluído de Porto Alegre. Há papéis no chão, rostos de políticos sendo pisoteados por um povo que corre ignorante e faminto. Há gritos, comerciantes que exaltam suas vozes, implorando por alguma atenção que salve seus estômagos da miséria. Há o cheiro da fritura, os carros que buzinam, a fumaça negra que invade minha atmosfera outrora pura. Há também a beleza corroída dos prédios históricos, o cheiro pútrido que impregna as paredes de um mercado público outrora imponente e luxuoso. E há, ainda, o fraco retumbar da justiça, emanando ondas surdas de um grito inútil de guerra, pelas entrelinhas de um filme realístico do cotidiano brasileiro.

Pessoas se amontoam em frente à prefeitura, falam, pulam, gritam, em vão. Não temos tempo para apoiá-las, precisamos trabalhar. Apenas os vagabundos tem tempo pra coisas inúteis, como protestar. Tudo o que queremos é chegar em casa, assistir televisão, dormir e ganhar nosso dinheiro no final do mês. A decadência é garantida por promessas que compactuam um contrato injusto de servidão. Os direitos trabalhistas já estão ultrapassados, ninguém precisa disso. Precisam apenas de alguém que garanta seu sustento por trinta dias, seu luxo por dois dias, sua fidelidade por quarenta anos. Paralelamente à corrida na selva, índios se amontoam na praça principal, impondo um décimo de sua cultura outrora valorizada. Crianças sujas, com seus olhos inocentes, pulam. A música que sai do rádio ultrapassado não é entendida por ninguém. Que língua é aquela? Serão os tupi-guaranis? Não se sabe. São apenas índios pobres sem alguma outra perspectiva de vida, se não a esperança de ganhar algum renome em forma de centavos que garantam seu almoço e o próximo próspero CD, é claro.

Um cão morre lentamente, no asfalto que queima em uma temperatura anormal de trinta e cinco graus célsius. Ninguém pode enterrá-lo de forma justa, nada de lágrimas, nada de cerimônias afetivas. É apenas um animal que, na sua irracionalidade, perdeu a vida ao atravessar as ruas agitadas da cidade grande. Mais um dentre os montes de vira-latas que têm sua existência ignorada e sua morte sem significância alguma. Cães que escondem o rabo entre as pernas, implorando por atenção ou apenas um pedaço de carne. Cães que sofrem, de dia claro e morrem ao meio dia na sua busca frenética por carinho. Os humanos, outrora sentimentalistas, finalmente evoluíram para a fase robótica do trabalhador egoísta: Seu sofrimento ocupa espaço suficiente em seus corações para que se deem ao luxo de se quer pensar no sofrimento do outro. Quem dirá no de um mero animal.

A morte, outrora assustadora, significa libertação de uma vida recheada de injustiças. É o século XXI com suas regras controversas, sua medicina exaltada, seus computadores eficientes, sua felicidade ignorada, o futuro de uma humanidade recheada de guerras e selvagerias irracionais se movendo, cada vez mais, rumo ao apocalipse requintado. As guerras estão extintas, estamos em uma época em que as ofensas sorridentes são o maior frasco de veneno. Outrora, Romeu precisara de um boticário para morrer por sua amada. Hoje, precisamos apenas de uma língua e um pouco de malícia. É efeito certo e eficaz, convenhamos, nada poético. Shakespeare que me desculpe, mas romantismos suicidas estão totalmente fora de moda.

Nas bancas de revistas, sorrisos forçados emolduram rostos criados no photoshop para agradar nosso ego mau acostumado com uma perfeição inalcançável. A moça da banca de jornais esconde sua beleza em baixo de três camadas de corretivos, pó e base. Seus dezesseis anos não são suficientes para manter uma pele oleosa livre de acne, por isso, ela esconde. Seu cabelo castanho se rendeu às luzes loiras, ruivas, azuis. A barriga, apertada por uma cinta de emagrecimento, se contrai enquanto o estomago ronca de fome. O pouco dinheiro que ganha é reservado para os shakes milagrosos que as famosas tomam para manter o corpo impecável. A jovem é anêmica, mas não se importa: Vê-se como linda. Ao seu lado, o namorado musculoso esconde na mochila pesada doses fortes de anabolizantes. Ele gosta de parecer com os caras que saem nas revistas másculas em cima de motos vorazes. O casal perfeito, reflexo de uma cultura doente.

Volto para o presente, dou play. Tudo recomeça, os gritos, a sujeira, a fumaça. Corro para pegar o ônibus no final da linha, que se prepara para partir. Antes de ir, escuto uma última balada. Na praça da matriz, pobreza e luxo emolduram um local outrora limpo. Um maltrapilho de cabelo comprido embala sua música no violão velho. Da sua garganta ébria, palavras bonitas ressonam e ativam meus ânimos quase mortos: "Quem me dera, ao menos uma vez, acreditar que o mundo é perfeito e que todas as pessoas são felizes".

O homem não sabe, mas embalando as palavras de Renato Russo, passou a mim certa parcela esperança que, outrora, matara o mesmo músico.

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