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terça-feira, 4 de setembro de 2012

Relato de uma Despedida


Dezenas de ônibus se amontoavam pela linha de partida da rodoviária. E ele ainda nao conseguia entender como dois dias poderiam ter passado de uma forma tao absurdamente rápida. A menina parecia distante à sua frente. Os óculos borrados pela chuva e os lábios trêmulos indicavam que ela estava com frio. Ele secretamente esperava que ela colocasse as mãos geladas por baixo de seu casaco pesado, mas nao tinha coragem de pedir. Parecia ousado demais de sua parte. Como que lendo seus pensamentos, ela fez exatamente o que ele tanto pedia por telepatia. Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha: suas mãos macias estavam mesmo geladas. Muito geladas. E ele nao se importava. Não conseguia parar de pensar sobre o quão injusto aquela cena parecia. Se pudesse, jamais tiraria seus pés dali. Mesmo que os all stars estivessem encharcados, graças à longa caminhada que tinha feito sobre poças e pingos incessantes de chuva. Suas roupas estavam pegajosas e quase podia sentir a gripe que lhe abraçaria assim que acordasse de manhã. Ela também nao estava muito apresentável, com uma touca maior do que a sua cabeça, os cabelos desgrenhados, as botas cheias de barro. Ainda assim, estava linda.

- Não quero ir embora.

Ela sorriu, de forma triste, enquanto suas unhas sutilmente apertavam suas omeoplatas, dando-lhe um arrepio. Ele ia sentir falta disso.

- Não vai...

A voz pedinte ressonou por seus ouvidos. Ele não queria ir, mas tinha. Em breve tudo mudaria, ele sabia disso. Mas será que ela esperaria? Era agosto, tinham ainda quatro meses de encontros rápidos, beijos sedentos e abraços imaginários até que tudo pudesse ser real. Ser verdadeiramente real. Como sempre quiseram que fosse. Como todos os namoros deveriam ser. Sem saudades infinitas, desconfianças ou descrenças por parte da família. Sem mais noites em claro no computador, tentando preencher o vazio das presenças um do outro. Sem mais esquecer os traços do rosto dela, do perfume que o corpo dela emanava, do toque gelado nas suas costas. Ele sabia muito bem o que queria. Queria ela, agora e nada mudaria isso. Nem mesmo o ônibus que o levaria embora sem previsão de volta em vinte minutos.

- Eu volto, amor. Tu sabe que eu vou voltar.

Ela sabia. Será que sabia mesmo? Depois de anos e anos se convencendo de que nunca esperaria por ninguem, ali estava ela: fazendo promessas que tinha medo de nao cumprir. Era uma garota forte e determinada, mas um pouco insegura. Tinha aprendido a não criar expectativas, a não sonhar com pessoas e a nunca sentar num formigueiro. Estava bem determinada a seguir suas próprias regras sobre uma sobrevivência segura no mundo até conhecê-lo. Até ele chegar como um furacão e destruir todos seus pré conceitos, todas suas regras inúteis. Ela sabia, acima de tudo, que amor nao durava.

Que as pessoas são livres e vamos todos morrer sozinhos. Ela tinha aprendido a não contar com as ações de ninguém e a ser feliz com ela mesma, sem necessidade de alguém para fazê-la sorrir. Mas isso tudo parecia muito desconexo e muito formal quando ela estava perto dele. Ele a fazia duvidar de suas crenças e a acreditar em seus maiores medos. E, mesmo que todas as suas células gritassem que ele estava mentindo, ela tinha confiança absoluta na palavra dele. Ele voltaria. Em breve. Ele iria vir por ela e eles ficariam juntos, talvez pra sempre. Ela sabia disso, no fundo da alma. Mesmo que seu corpo gritasse em objeção, mesmo que sua cabeça gritasse "RESPOSTA ERRADA", ela nao tinha escolha. Era uma dessas coisas que a gente simplesmente nasce sabendo. Tipo respirar ou algo assim.

- Eu sei. Eu sei que vai.

Ao redor do pequeno drama, milhares de pessoas corriam, com suas malas cheias. Pessoas que viajavam a trabalho, pessoas que voltavam pra casa, que iam pra casa. Pessoas que morriam, que nasciam. O mundo inteiro girando, enquanto eles estavam sozinhos numa dimensão particular. Sem tempo correndo ou nada mais que importasse. Estavam juntos e, no momento, isso era tudo que precisavam saber. Mas também, ambos sabiam que, assim que se separassem, tudo voltaria ao eixo normal. As noções de dia e de noite não mais se misturariam, mas seriam horas e tempos separados.

Os minutos iriam voltar ao eixo normal e rastejante, eles se fundiriam com a massa populacional e seriam apenas mais dois membros cinzas solitários, tentando dar certo sentido à rotina repetitiva. O dólar voltaria a correr, a água voltaria a ser gasta irresponsavelmente. As aulas começariam no dia seguinte, com os colegas iguais, os professores iguais, a vida igual. Os sentimentos se confundiriam e eles não mais estariam em êxtase. Seriam eles, normais. E não o eles brilhantes que eram quando estavam juntos. Mesmo que se conhecessem há muito tempo, nunca se acostumavam com a estranha sensação de renascer das cinzas quando se separavam. Quase como se o universo inteiro saísse de foco naqueles momentos pequenos em que se viam. Quase como se, quando se separassem, a força gravitacional caísse com toda a força sobre suas cabeças levianas.

Ela já sentia a leveza de seus passos tornarem-se, gradativamente, mais e mais pesados conforme o acompanhava até a porta de embarque. Sentia-se inútil. Queria, de alguma maneira, poder fazê-lo ficar. A paciência era inimiga de sua natureza, mas ela fazia o que podia. Podia ver a névoa cinzenta que se formava nos céus, uma projeção física do que se passava dentro dela. As estrelas estavam encobertas e tudo que ela podia ver ou sentir era a tristeza incerta de um calor abafado. Sem brilho.

Ele já conseguia ver o brilho desaparecer de dentro do seu peito. De alguma maneira, quase como que por mágica, ela fazia com que tudo parecesse mais nítido, mais brilhante. Ela tinha uma energia que o sugava até o fim e o fazia sentir coisas que já se julgava velho demais pra sentir. O peso de seus pés estava começando a voltar, quando a mão gelada dela ameaçava a soltar a sua mão forte e quente.

Eles se complementavam de uma maneira rítimica, como em uma dança, como o yn e yang. Mas, por algum motivo, ainda não podiam ficar juntos.

Num beijo urgente, se despediram. O motorista entra, com um ar arrogante, típico de quem não se importa com demasiadas histórias adolescentes alheias. Ele seguiu seu caminho para o leste. Ela, seguiu seu caminho para o oeste. Opostos que não tinham a força que deveriam para se atrair. Os primeiros pingos de chuva começaram a cair por cima da cebeça dela, ainda que a touca fizesse o péssimo trabalho de protegê-la. Suas mãos estavam começando a congelar, quando seu ônibus apontou na esquina. Ela estava cansada, feliz e triste. Não sabia como explicar como dois sentimentos opostos podem ocupar a mesma pessoa ao mesmo tempo, mas era exatamente assim que se sentia.

Pegou o lugar ao lado do cobrador, observando enquanto mais pessoas vinham da rodoviária lotada.
As gotas caíam em enorme lentidão pelo vidro sujo da janela. Suas lembranças estavam turvas, entre os sorrisos que ele lhe dera e os olhos ávidos de quem observava a rua na parada. Lá fora, corpos se amontoavam por passos quebradiços em uma noite comum de inverno. Lá dentro, ela não notava. Estava ocupada demais sorrindo por ele.

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