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sábado, 15 de setembro de 2012

Diário de uma Vadia Oportunista

13 de setembro de 2012

11:30 da manhã, em algum ônibus de Porto Alegre

Jovens universitários lutavam por um lugar no transporte coletivo que se aproximava. Eu, munida de minha perna de ferro, já estava preparada para a guerra. Qualquer coisa era só pôr o pé que eu não sinto por entre as pernas de quem me pisoteia e deu! Nada de dor, nada de brigas. Todo mundo me pisando sem se importar e sem que eu sinta absolutamente nada. Acontecer uma coisa dessas com a gente tem lá seus privilégios.

Mas é claro, para melhorar minha situação, eu estava sem passagem. Meu passaporte de isenção estava com uma falha. Não, não diria bem uma falha, mas uma intromissão da EPTC cancelara meus créditos, e lá estava eu. A garota da perna de ferro, escondida por baixo de panos e panos de roupas discretas, para poder evitar as curiosidades alheias. Depois de toda aquela vasta onda irreconhecível do inverno, eu estava desacostumada a andar por aí com as belas pernas à mostra, impondo respeito onde quer que passe. Depois que se vive uma vinda inteira aprendendo a estar escondida e longe dos holofotes, é muito estranho finalmente ser notada. E nem é por algo que me orgulhe ou que me faça sentir especial. Quer dizer, especial até me sinto. Mas não de uma forma boa. É mais como um caso especial de aberração, ou uma prova de superação como diriam os positivistas. O fato é que, escondida ou não, eu tenho certos direitos reconhecidos mundialmente (ou nacionalmente, se preferir). Como por exemplo, entrar em filas preferenciais nos bancos – algo que tem provocado a revolta de dezenas de clientes alheios à minha condição.

Tem sido engraçado, realmente engraçado perceber o quão as pessoas podem ser irritantes quando não compreendem. Logo eu, que sempre fora a invisível, desconhecia da violência populacional contra quem se aproveita das situações sem motivo aparente. E, devido à minha discrição sobre minha, hum, como devo dizer, "deficiência", tenho sido taxada de vadia oportunista. É. Bem isso. Vadia oportunista. Aquela que se acha no direito de se aproveitar dos outros sem o mínimo motivo. E, pra ser honesta, ainda não sei qual rótulo é pior. Ser reconhecida como "A menina do caminhão" pode até ser legal quando a pessoa esbugalha os olhos e acha que eu sou um fantasma ou uma espécie de super-heroína dos quadrinhos geneticamente modificada que suporta pesos enormes e sai ilesa e tal. Mas ser taxada de vadia oportunista? Bem, isso vai um pouco além das minhas expectativas.

O fato é que, com essa minha pseudofama de aproveitadora, acabei por ser agredida verbal e moralmente no tal do ônibus. E por nada mais, nada menos do que a própria cobradora. O que fiz? Chorei. É, eu sei. Fui covarde e mulherzinha. Mas acho que eu tenho o direito de ter sentimentos, né? Tente entender: Estava eu lá, sentadinha no bonito banco amarelo que fica atrás do motorista, fazendo de tudo para passar desapercebida, quando a adorável cidadã reconhece-me e julga-me com sua notável percepção de justiça. Esqueçamos que os ônibus são públicos e que a bunda é minha e eu a coloco a onde quiser, e imaginemos um mundo onde os cobradores tem a índole respeitável e, podem sim, gozar dos mesmos poderes concedidos, em tempos atrás, somente a juízes competentes para exercê-los. Ora, que mal ela estava fazendo, afinal? Só por ter proposto a mim, a vadia oportunista, a possibilidade de retirar meu traseiro imundo de cima de um banco reservado especialmente para o doce senhor de pernas fortes e intactas que se mantinha em pé e completamente alheio ao meu tamanho desrespeito, não significa que eu deva me sentir ofendida ou que ela fosse, no mínimo ignorante. Pobre mulher! Estava apenas exercendo seus conhecimentos sobre bondade e justiça que a ela são impostos pelo alvorecer do reconhecimento cobralístico dotado aos cobradores brasileiros!

Ora, que monte de merda! Desculpem-me o sarcasmo, mas não pude evitar. Quem acompanhou a cena, pode testemunhar a meu favor com o que, de fato ocorreu. A mulher se impôs de forma autoritária, exigindo uma ação que a mim era inacessível ou incabível. Fui tomada pelos nervos e, num triste surto de falha na percepção dos sentidos, respondi negativamente ao seu pedido, transformando-me numa vadia oportunista debochada. E a situação só piora... Passageiros, não menos dotados da percepção da justiça e dos poderes de julgamento, também se revoltaram contra o crime gravíssimo que eu acabara de cometer. Exercendo seus deveres como cidadãos moralistas, eles se viram no direito de me expulsarem do lugar também! Ameaçaram-me, julgaram-me, ofenderam-me. E o que eu fiz? Novamente, digo que chorei. Meus nervos estavam confusos, meus pensamentos não vinham em linhas retas. Como algo desse gênero poderia estar acontecendo? Não sei. De fato, ainda não compreendo.

Ao meu lado, um bom senhor lia calmamente seu jornal. A bengala dependurada pela perna torta denotava seus conhecimentos a cerca do meu também sofrimento. Chorei e, desamparada, recorri às suas desculpas. Pelo menos alguém precisava saber que eu não era o que eles afirmavam. Nos demos bem, conversamos, ele me fez sorrir. Lá no fundo do ônibus, o motim estava formado. Ameaças violentas começavam a tomar forma, uma grande amiga minha gritava a meu favor, a cobradora se mostrava impassível, eficiente. Estava com o rosto orgulhoso a encarar a discussão que ela própria dera origem. Não prestei-me a ouvir. Tudo que podia entender eram as palavras doces do senhor ao meu lado que, coincidência ou não, acabei por descobrir que era meu vizinho.

- Meu Deus, tu é a menina do caminhão?

Dissera ele, sendo, pela primeira vez desde que eu entrara no ônibus, o único a reconhecer a minha verdadeira identidade.

- Sim... – dissera eu, incerta sobre como ele tinha conhecimento disso.

A partir daí, a conversa não teve fim. As lágrimas caíam, não mais por injustiça, mas por emoção. Ele contara-me sua historia, e eu, em troca, confiara minhas angústias a ele. No fundo, vozes haviam cessado. A guerra parecia findada. Minha alma ainda doía, mas eu já não me importava: Meu novo amigo estava me mantendo entretida, longe das minhas dores egoístas. A inquisição estava quase no fim, quando a bruxa em questão se uniu a um bom mago que a fizera ter coragem para seguir em frente. Observei, cheia de mágoa, a indiferença da cobradora que evitava a minha direção. Levantei-me, expliquei ao motorista a situação e decidi por seguir meu caminho. Não acho que tenha sido por maldade, mas sei que foi algo mau. A ignorância é sempre algo mau, no final das contas. É a doença que salva e ao mesmo tempo, limita um povo que vai atrás de mitos sem o mínimo de embasamento. Juntei as migalhas que restaram da minha dignidade, enchi o peito de ar e disse:

- Hey amiga! - Ela virou seu grande, pardo e irônico rosto para mim. Eu queria tanto ver qual era a expressão escondida por baixo daqueles óculos escuros... Raiva? Vergonha? Indiferença? - Obrigada pela consideração.

E desci.

Logo atrás de mim, o velho, alegre homem, seguia com dificuldade pelas escadas a baixo.

- O senhor precisa de ajuda? - Disse eu, ao vê-lo caminhar de forma desengonçada pela agitada Assis Brasil. Fiquei um tanto atordoada com a quantidade perigosa de pessoas que se aplumavam pela calçada, uma ameaça à manutenção da sua jornada.

- Preciso, preciso sim. – disse ele, tirando-me do torpor pós-ataque crônico de nervosismo.

- O que posso fazer? – disse eu, ansiosa por imaginar se o peso dele seria suportado pelo meu corpo trêmulo. As pernas estavam como varas bambas, meu organismo ainda estava sob o efeito da adrenalina. Os olhos ardiam, ameaçando reproduzir mais uma quantidade implacável de lágrimas. Respirei fundo, pelo que parecia ser a milésima vez em menos de trinta minutos e aproximei-me dele, já preparando meus músculos tensos para a sobrecarga de seu peso, quando ele, abruptamente, disse-me:

- Não saia correndo.

Aquilo havia me pegado de surpresa. Eu esperava que ele me pedisse para ajuda-lo a caminhar ou algo do tipo, mas não. Eu então sorri, enquanto observava seus passos cambaleantes ganharem um rumo. Atravessamos a rua, pelo que pareceu uma eternidade, enquanto eu pacientemente aguardava que ele me acompanhasse.

- Por que o senhor não consegue caminhar direito com aquela perna?

Disse, apontando para a perna direita. Eu bem sabia o quão indiscreta uma pergunta dessas poderia soar nos ouvidos de alguém que se acaba de conhecer, mas ele já sabia de tudo que havia ocorrido comigo. Então talvez, pensei eu, pudesse não ser tão ruim. E também, eu de nada entendia sobre recuperações de tetraplégicos. Aliás, eu não sabia nada sobre tetraplégicos, a não ser a aparente mentira de que os movimentos jamais voltariam.

Um alívio me percorreu quando percebi em seus olhos que minha pergunta não o havia ofendido. Na verdade, ele parecia muito íntimo de mim, como se nos conhecêssemos de longa data, ainda que houvéssemos conversado por poucos minutos como dois desconhecidos em um ônibus, unidos pelos desastres da vida.

- A tetraplegia afetou mais a minha parte direita, entende? Minha mão e perna direita ainda não voltaram totalmente, daí eu não consigo andar direito.

E ainda assim, ele estava na minha frente, de pé, caminhando. Sua velha bengala de madeira dava-lhe apoio, as pernas cambaleantes pegavam impulso com uma força de vontade que parecia transpirar de sua pele jovial. A idade e a condição não o importavam. Senti-me pequena e fraca e terrivelmente jovem. Aquele homem tinha me passado mais sabedoria em trinta minutos do que dez livros de auto ajuda em oito anos ou quinze sessões psicológicas em seis meses. Ele ia contra todos os meus padrões e probabilidades.

- Entendi. – dei de ombros, tentando não parecer tão encantada. Às vezes as pessoas se incomodam quando olhamos pra elas como se fossem importantes demais. Pelos menos, eu me incomodaria. – Desde que esteja caminhando, já é bom, certo?

Ele sorriu. Uma luz difícil de se ver por aí estava incendiando a expressão cansada do seu rosto e, de repente, eu também me senti iluminada.

- Isso, isso mesmo.

Olhei para a rua lotada do outro lado da faixa de segurança, enquanto os semáforos preparavam-se para abrir passagem aos pedestres. Com um pesar, lembrei-me que tinha um compromisso. Eu não fazia ideia de quando o veria de novo e isso quase me deprimiu: que outro estranho ouviria uma maluca chorar sem parar sobre seus infortúnios insignificantes em pleno ônibus?

- Bom, eu tenho que ir. Foi bom conhecer o senhor.

Ele me olhou sorrindo, ainda daquela forma tenra.

- Tudo bem, eu também tenho de ir - De forma cortês, ele beijou a parte de cima da minha mão – E tu ainda vai ser muito feliz, sabia?

Eu sorri, tentando não parecer patética. Mas estava contente, afinal. Aquele homem havia salvado a minha manhã. Quiçá, até mesmo o meu dia. Ele foi, cambaleando para a parada, enquanto eu seguia rumo ao outro lado da rua. Olhei para o lado, tentando vê-lo e só avistei o aceno de sua mão. Pude ouvir, e gostei disso, a voz rouca que dizia:

"A gente ainda se vê por aí".


 

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