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terça-feira, 4 de setembro de 2012

Capítulo XXV, Livro I

Aquela bolsa recheada de um O positivo nunca havia me parecido tão perigosamente deliciosa. Meus impulsos gritavam, em algum lugar que eu não conhecia, mandando que eu pulasse sobre ela e a engolisse inteira, mas me contive. Os olhos de Robert ainda estavam fixos em mim e eu precisava mais do que tudo passar nessa disciplina para finalmente poder ganhar o meu próprio Arco 3d00. Mas olhar para aquele líquido viscoso e permanecer parada era mais difícil do que eu imaginava. Eu podia sentir a minha faringe queimando e as minhas narinas pulsando com o simples cheiro de ferro. Era sangue humano, dos bons. Quente, fresco. Eu me perguntei da onde diabos aquilo tinha surgido.

- Da onde você tirou isso?

- Da minha dispensa.

Aquele tom sarcástico tinha sido um banho de água gelada para os meus nervos tensos. Ele soltou uma gargalhada descontraída, tentando tirar minha concentração do perigo. E eu admito que fiquei muito, muito grata por isso.

- Não tem graça sabe – disse eu, colocando as mãos no quadris e olhando para ele. Deus, eu preferiria passar a vida lutando contra a sede do que ter de encará-lo por dez minutos. Mas nesse momento, eu dificilmente poderia escolher qual era o pior perigo: A minha sede incontrolável de sangue ou a minha sede incontrolável de Robert. Optei pela primeira opção, já que eu estava mais acostumada a me controlar perto dele do que de um O positivo.

- Tranque a respiração, ma petit.

Dizendo isso, ele se moveu rapidamente até a cortina, rasgando uma faixa de uns trinta centímetros e, logo em seguida, veio até mim com uma expressão séria.

- Vire-se.

- O que? A gente vai brincar de cabra-cega?

Ele sorriu.

- Cale a boca e vire-se.

E eu o obedeci. Não por que era submissa, mas por que algo na voz dele me passou confiança e autoridade. E, afinal de contas, ele era meu professor. Ainda que fosse totalmente anti-ético da minha parte ficar ruborizada e incontrolável perto dele. Ainda que cada centímetro do meu corpo ardesse pela aproximação repentina. Ainda que devêssemos estar nos beijando selvagemente pelas ruas escuras da cidade, ele merecia meu respeito. Primeiro por que não me retribuía em nada nesse quesito e, segundo, por que eu deveria estar me concentrando em não respirar, ao invés de tentar sentir com todas as forças o estranho perfume que ele emanava. Aquela fusão maravilhosa entre metal e frutas doces.

- Sei que você não está acostumada com isso e sei muito bem como deve ser a sensação.

Disse ele, enquanto se posicionava pro trás do meu pescoço e, com os dedos fortes, amarrava o lenço no meu rosto, trancando a passagem de ar pelo meu nariz.

- Por isso, lembrei de uma velha técnica que eles costumavam ensinar nas escolas de treinamento de caçadores.

- Por que ensinavam a trancar a respiração se só existem caçadores humanos?

As sobrancelhas dele se uniram, indicando que ele estava se concentrando em algum lugar bem distante. Tipo alguns séculos atrás ou algo assim.

- Eles faziam isso durante a segunda guerra mundial, como uma forma de se proteger do cheiro de morte e dos gases das câmaras. Quando caçadores iam até as concentrações de Hitler, era costume da época estarem bem equipados, inclusive com máscaras de oxigênio para proteger suas vidas. E quando não conseguiam a máscara necessária, eles usavam o que tinham, como faixas de suas próprias roupas. Mais tarde criaram máscaras de couro, pra que não nos infectássemos com venenos de outro tipo. Nunca perdemos tantos homens quanto naquela época. Mas isso você vai estudar em breve, antes precisamos nos concentrar na sede da outra Isadora.

- Você já usou essas máscaras?

- Milhões de vezes.

- É que você faz parecer tão fácil... E eu... Eu simplesmente não parei de sentir o cheiro. O sangue continua ali e minha jugular continua pulsando pra senti-lo. A... A Outra está gritando aqui dentro.

Eu estava começando a perder as esperanças sobre mim mesma. Obviamente eu não iria conseguir durar muito tempo perto do sangue fresco, mesmo com milhões de mascaras. Nada fazia o cheiro passar. Ele então pôs as duas mãos no meu rosto, me obrigando a olhá-lo. Eu pude ver as águas cristalinas que se moviam por dentro daqueles olhos cor de prata. De repente, o sangue, o cheiro, o mundo e até mesmo eu tínhamos saído de foco.

- Não é fácil e as coisas não vão melhorar. Concentre-se. Entendeu? Concentre-se. A sua respiração só faz com que o sangue pareça mais apetitoso, então não respire. Não deguste, não vacile. Você precisa ser forte e se concentrar. Nunca foi fácil pra mim e ainda não é. Mas você não é como eu, Isa. Você é humana. Você acha que não é, mas você é. Enquanto eu... – e ele sorriu de uma forma magoada – Bem, digamos que eu seja... Como é que o seu amigo me chama? Demônio? Certo. Eu sou um demônio tentando passar por humano. Vê a diferença?

Eu conseguia ver a diferença. Mas ele continuava errado. Desde que eu tinha bebido o sangue de Pandora, tudo estava diferente. Eu não era assim tão humana quanto ele dizia. Agora aquele outro lado de mim, o lado vampiresco, estava mais acordado do que nunca. Todos os meus sentidos pareciam mais aguçados, todas as minhas forças pareciam mais duradouras. O sangue tinha me dado uma energia, um poder desconhecido. E por mais que eu quisesse me fazer acreditar que não foi por que eu quis, eu sei que é mentira. Eu nunca quis tanto algo em toda a minha vida quanto eu quis o sangue dela. Poderiam dizer o que quisessem sobre a minha índole ou sobre a minha força ou até mesmo sobre a compulsão de Josephine. Mas ninguém poderia me fazer esquecer da sensação do sangue na minha língua, no meu corpo, lavando o meu estomago e as minhas veias. Aquele calor intenso por todo o meu organismo, aquela sensação de plenitude. Não, não, ele estava errado. Eu não era tão humana assim.

- Eu não sou humana, Robert. Ao menos não totalmente. Não somos tão diferentes assim. Quer dizer, eu sou metade vampira. Eu sei que isso é perigoso e tal, mas é a realidade. E se eu tenho que ser sincera, acho que esse é o melhor momento.

Ele se distanciou, tirando do bolso um estilete de prata, entregando-o pra mim.

- Então faremos o que for necessário para que isso não a transforme em uma assassina.

Auch, essa tinha doido. Ele tinha razão. Eu não era uma assassina e muito menos um monstro. Ele tinha toda a razão. E algo no modo como ele tinha me olhado fez com que um arrepio subisse pela minha espinha. O que diabos eu teria de fazer com aquele estilete?

- O que eu vou fazer com isso?

Ele voltou à sua cadeira de observação, sentando-se majestosamente, com certa soberba. Os braços cruzados fizeram os músculos de seus braços saltarem pelo tecido da camiseta. Ele estava lindo. Lindo e perigoso, de uma forma que eu não gostava de ver.

- Você vai abrir aquela bolsa de sangue com o estilete e retirar o chaveiro do seu próximo armário. E, se fizer tudo direito, vai encontrar seu novo equipamento lá dentro, antes que o sol se ponha.

Dizendo isso, ele apertou no botão de cima do relógio dourado, fazendo-o tiquetaquear daquele modo irritante, que somente aquele maldito relógio sabia fazer. Marcavam trinta minutos. Trinta minutos para que eu passasse de uma vez por todas. E então tudo fez sentido, todo aquele mistério sobre qual seria a minha prova prática e de como eu iria recompor minhas aulas perdidas.

- Então essa é a minha prova?

- Sim, essa é a sua prova. E, a propósito, os minutos estão passando.

Eu o amaldiçoei por isso.

Ele achava que eu era o que? Alguma das suas vítimas para os jogos mortais versão damphir?

Bufando, rentei me recompor, sem respirar como ele havia me aconselhado.

Mas aquela maldita faixa de tecido não fazia as coisas parecerem melhores, eu ainda podia sentir muito bem o cheiro do sangue por baixo do algodão.


 


 

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