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quarta-feira, 16 de maio de 2012

Lucíola

É incrível o que um lápis de olho, uma câmera fotográfica e um cabelo bem arrumado podem causar na vida de uma mulher. Lá estava eu, no alto da minha vida, trancada no banheiro tentando tirar alguma foto que prestasse. Daí eu olhava para o lado, por que preciso parecer descontraída. Daí eu olhava para baixo, por que precisava parecer triste. Daí eu abria a boca e estreitava os olhos, por que precisava parecer assustada. Daí eu sorria, bem forçada, pra parecer fotogênica e feliz na minha foto de perfil. Opa, meu cabelo ficou muito pro lado... Quem sabe se eu mexer um pouco aqui, um pouco ali... voa lá! Estou linda. Até eu me pegaria. Fala sério, olha que perfeição de sorriso. Definitivamente uma mulher bem sucedida. Olha a minha covinha, que charme. Olha o brilho nos olhos, como se eu dissesse que sou animada e intrigante demais. Essa vai pra minha instante, essa vai pra minha mãe e essas outras vão pro facebook. É, sou linda. Morram com isso.

Então vou lá, toda confiante passar as benditas fotos para o computador. Hum... A luz não ficou como eu imaginava que ficaria. Hum... Será que o photoshop cobre esse cravo no meio da minha testa? E o que eu faço com aquela ruga esquisita na ponta dos olhos? Oh droga. Fotos horríveis, sou horrorosa. Apago uma, duas, três, todas fotos. Não sou fotogênica. Odeio todas as outras mulheres que saem bem nas fotos. Minha inveja mal contida quase explode em comentários sarcásticos. Mas deixa... Deixa... Já que não sou bonita o suficiente, vou tentar ser inteligente o suficiente. Tipo aquela lenda de que garotas feias são inteligentes. Pego meu livro aposentado da Jane Austen e tento me concentrar. Leio uma, duas, três paginas e paro. Que merda de livro é esse? Jane Austen era chata demais, mais chata do que eu. E ler sobre a vida pacata dos seus personagens me deprime. Meu Deus, não gosto mais de ler! Odeio todas as mulheres fotogênicas e inteligentes. Todas elas que vão para o inferno, sério.

O que acontece quando a gente não tem os pré-requisitos pra ser aceito? Não sirvo pra ser bonita, não sirvo pra ser inteligente. Pra que eu sirvo então? Vou acabar virando prostituta. Isso aí! Prostituta. Prostituta não precisa ser inteligente, nem bonita. Se tu tem vagina, tu tá dentro. Dá pra imaginar futuro mais promissor do que isso? E vou usar ainda o nome de Lucíola. É, algo bem clássico, pra intrigar a mente dos meus clientes. Vai que alguém entende de literatura e se interesse por mim bem rápido? Tomei a decisão mais importante da minha vida! Peguei minha melhor calcinha preta, meu melhor sutiã rosa e fui pra rua. Fiquei lá, parada na frente de casa, observando o movimento. Que noite linda aquela. Eram sete horas e o sol já tinha sumido, deixando uma estrela bem grande no horizonte. Inspirei fundo aquele ar frio, abri os braços e sorri. Sorri pra minha nova vida que ia ser cheia de sucesso e lucro e beleza e inteligência. Caminhei não sei por quanto tempo só de calcinha e sutiã por aquele bairro cheio de crianças, cachorros e postes. As mulheres me olhavam com desprezo e os homens pareciam tentados. Alguns assoviavam, outros apontavam o dedo e cutucavam que estivesse por perto. Eu era a maluca de roupa intima. E eu nem tinha certeza se isso deveria parecer sexy ou não. Só sei que, lá pelo meio da décima quadra que eu atravessava, tinha um carro da RBS parado. Desceu uma moça loira, muito bem arrumada, com um microfone na mão e veio falar comigo. Perguntou meu nome, minha idade, meu signo. Sorria pra mim. Parecia uma boneca, de tão bonita. Parecia uma empresária, de tão inteligente.

- E você está protestando contra o que? - perguntava ela, não muito interessada, mas definitivamente apta a saber de tudo. A típica profissional comprada pelo serviço. E eu percebi. Percebi que ela era exatamente o tipo de mulher que eu odiava. Essas mulheres que tem mania de ser perfeita o tempo todo. Que coisa irritante. Custava ela ter uma espinhazinha? Custava ela ter se dado mal na vida uma vez se quer? Eu nem estava protestando contra porra nenhuma. Só queria ganhar algum dinheiro vendendo meu corpo por aí, só pra testar a minha capacidade de sedução ou reviver a minha segurança. Mas daí me aparece uma Barbie com dois metros de altura só pra me fazer lembrar de toda minha inutilidade. Quer saber? Quero mais é protestar mesmo, já que nem pra puta eu sirvo.

- Quer saber contra o que eu protesto? – Falei, já me irritando pra caramba com essa merda de vida. Ela queria uma opinião? Ela queria uma matéria pro jornalzinho de merda dela? Ela queria um salariozinho supérfluo pra sustentar a maquiagem importada? Então tá. Eu ia dar isso pra ela. Mas ia dar bem dado. E ela que aguentasse o tranco.

- Sim, quero. Pode nos contar? – Ela disse, calmamente, inclinando-se para a esquerda, de forma que seu rosto foi focalizado pelo câmera. E foi aí que meu sangue ferveu. Não é que a cadela ficava bem na câmera mesmo?

- Eu protesto contra vadias babacas que nem tu que ficam me atormentando o dia inteiro!

- O quê? – disse ela, parecendo assustada.

E então eu deixei rolar. Veio toda a minha revolta e dor e inveja e raiva à tona. Um vômito bem ácido sobre tudo que eu odiava. E seria bom que todo mundo me ouvisse mesmo, por que eu queria toda a atenção do mundo naquela hora e ninguém ia me tirar isso!

- É, quer saber? Eu odeio todas essas bonequinhas perfeitinhas que estão sendo vendidas em qualquer esquina.

- Corta, Adenilson, corta!

Segurei a moça pelo braço e joguei meu sapato verde na cabeça do câmera, tamanha era a minha raiva.

- Não corta porra nenhuma, por que eu não terminei ainda!

E o Adenilson, aquele cara de moicano que estava de olhos arregalados e uma camiseta linda da Dior, saiu correndo. E eu fui atrás dele. Peguei o moleque pelo braço e fiz ele voltar comigo até a câmera, só por que eu tinha certeza que aquela merda toda era ao vivo.

- Sabe qual o meu problema, Adenilson? Sabe?

E ele revirou a cabeça dizendo que não.

- É que eu to farta de gentinha que nem tu e ela – apontei com o dedo para o rosto pasmo da loira. – É, sabe? Gentinha de cabeça oca que nem vocês que me deixa maluca de pedra. A perfeição ainda vai acabar comigo, Adenilson. Sério, a perfeição vai acabar comigo. Sabe como é triste não ser bonita hoje em dia? Ou não gostar de ler? Como que eu vou sustentar os filhos que eu ainda nem tenho? Tá foda Adenilson, tá foda. Só que só os fudidos que nem eu percebem isso. Essa piranha aí do teu lado nem surta que nem eu, por que ela é perfeita e não precisa reclamar das imperfeições. E eu odeio, eu odeio isso tudo. Eu...

E foi aí que a loira me acertou em cheio com um pau no meio da cabeça.

Dá pra acreditar que aquela vadia tinha força pra me derrubar? É, ela derrubou. Só me lembro da minha foto no jornal do dia seguinte, com meio peito pra fora e a boca bem aberta. Não é que eu era fotogênica, afinal? E eles diziam lá na reportagem que eu era o ídolo jovem do momento. Outros diziam que eu tinha virado a revolucionaria modernista a favor do feminismo do século XXI. Não entendi porra nenhuma do que eles queriam dizer com tudo, mas sei que no final da reportagem me senti mais importante e útil do que nunca. Não é que minha imperfeição e maluquice tinha sido mais famosa do que a bunda da loira na playboy? Ah, eu me senti. Eu brilhava. Eu e meu lindo peito esquerdo naquela foto do jornal. E olha que nem foi de proposito nem nada, mas fiz questão de pôr no meu facebook. E no pensador, tá cheio de frases minhas. Eu virei a onda do momento. Dá pra acreditar? Tô até pensando em me candidatar pra entrar na Academia Brasileira de Letras, bem ao estilo Bruna Surfistinha. Vai que eu viro referência de estudo?

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