Translate

quinta-feira, 31 de maio de 2012

O texto que não deveria ser lido

Na última vez em que fui internada em algum hospital, a coisa não foi lá muito agradável. Lembro daquele sentimento de dor, de solidão, de medo, de angústia. Lembro de acordar meio tonta, meio perdida, meio triste. O coração batendo fraco, a luz cegando o pouco de visão que eu podia suportar. Uma seringa injetada na minha veia, bombeando o sangue alheio. Algum anônimo desse mundo podre ajudou a salvar a minha vida, e serei eternamente grata a ele/ela por isso. Coma induzido, foi o que eles me disseram. Caminhões, fatalidades, durma. Essas coisas que a gente escuta quando sobrevive a uma tragédia. Logo se passaram duas semanas e eu tive alta. Ainda fraca, ainda exausta, ainda perdida. Não sabia qual era a parte de mim que tinha se ido no atropelamento, não sabia qual era a parte de mim que tinha ficado. Eu passei por uma fase pós quase morte, na qual só conseguia me mover por instinto e carência. Era tudo puro sentimento. Distribui eu te amo pra todo mundo. Distribui sorrisos, agradecimentos, lágrimas, conforto pra quem quisesse pegar. Era eu dizendo pra todo mundo que as coisas iam ficar bem. Era todo mundo dizendo pra mim que eu tinha de ser forte. E eu era. E eles eram também. Mas parecia nunca bastar.

Na quarta que vem, farão seis meses. Seis meses. O tempo coringa, o tempo que eu precisava para estar bem. Foi o que me disseram no hospital: Daqui seis meses, tu já tá voando. Não acreditei. Não queria ouvir. Quem eles pensavam que eram? Eu que sabia quando e como ia melhorar. E não é que eu fiquei boazinha dentro de três meses? La estava eu, de muleta e tudo, andando. E que felicidade! Só quem perde sabe o valor que tem essas coisas tão naturais. Tão natural caminhar né? Mas eu fui privada disso por três meses. Três longos meses. E eles me disseram que eu só iria caminhar em seis meses, com sorte. Alguns médicos penalizados me garantiram que até o natal eu já estaria caminhando muito bem. Minha família tentava ser o mais gentil possível, me dizendo pra ter paciência. Daqui há alguns anos tudo ia se resolver. Seria eu na minha melhor versão quase normal possível. E sabe o que eu dizia? Não. Eu dizia não pra tudo isso. A gente não sabe a força que tem até que a nossa única alternativa é ser forte. Eu fui forte não por ser uma pessoa assim por natureza, mas por estado de necessidade. Se não fosse pela minha fé na minha própria capacidade, provavelmente ainda estaria presa na cadeira de rodas.

Seis meses. Quase seis meses. Nem sei ao certo como me sentir sobre isso. Consigo lembrar perfeitamente de quando estava no hospital e as pessoas usavam essa expressão. Parecia tão distante, tão vago. E seu eu não ficasse boa até lá? E se tudo desse errado? Não. Tudo ia dar certo. Tudo ia ficar muito, muito bem. Muito melhor do que eu jamais imaginei que ficaria. Repetia os mantras de positividade todos os dias. E um fogo, uma ardência que me queimava inteira por dentro, noite e dia. Sempre tive essa chama, mas enquanto estive na cama do hospital ela era incessante. Um combustível pra minha incapacidade temporária. Quando voltei pra casa, lembro que ainda não podia fazer muitas coisas. Passava meus dias sentada, assistindo tv, lendo, dormindo ou jogando qualquer coisa. Todos meus amigos eram bem vindos, sendo eles próximos ou não. Conheci primos distantes, fiz as pazes com tios que nunca gostei. Reconheci o poder da autonomia, da liberdade, da independência. E, de repente, algumas coisas antes inadmissíveis, acabaram acontecendo. Perdi muitas coisas. Muitas pessoas. Perdi a mim mesma. Caí umas duas ou três vezes. Chorei por muitas horas. Fui triste, verdadeiramente triste. Mas jamais desisti. E a cada dia que passava, eu estava mais próxima dos seis meses, da minha libertação.

Escrevo isso por que preciso falar sobre o que me angustia e prefiro não dizer nada a quem se importa. As pessoas normalmente tem a tendência de se preocupar demais se o nosso psicológico anda meio afetado, então tudo isso vai ficar só nos meus textos mesmo. Se importar é um perigo, eu sempre digo isso. Sabe o que me deixa angustiada? A cirurgia. A imprevisível cirurgia que vai me cortar a realidade ao meio. Farão seis meses na semana que vem e prefiro acreditar que, até lá, tudo ficará bem. E pra que tudo fique bem, eu preciso que essa cirurgia seja concluída com sucesso. Daí me vem pessoas que realmente, realmente se importam, dizendo que Deus tá comigo e eu preciso ter fé e tudo vai acabar bem. Me assusto. Cadê a minha fé inabalável naquele que me fortalece? Talvez tenha sido alguma espécie de sinal divino. Diversas pessoas me falando sobre como Deus vai sim olhar por mim. O problema é que fica difícil. Fica difícil me acalmar e pensar positivo. Por que toda vez que eu penso sobre amanha, me vem todas as lembranças da minha ultima experiência. E me vem dor, medo, solidão. Aqueles sentimentos escuros que me derrubaram em cheio no meio da rua, voltam com tudo. A única lembrança que eu tenho do que me aconteceu naquele dia, volta com tudo. E sinto medo. Medo de acordar novamente num quarto de hospital, meio perdida, meio triste, meio sem sangue. Ainda que a cirurgia não seja nada em comparação à ultima intervenção cirúrgica que eu sofri, me assusto. Vem então aquele cheiro dos lençóis do hospital. A dor da agulha pinicando minha veia, me deixando transbordar de morfina até as orelhas. A fraqueza, a sujeira, o cansaço. Vem tudo e não vem nada também. Não sou receptiva pra essas lembranças, mas elas me invadem. Talvez isso se chame trauma, talvez se chame besteira.

E agora sinto o peso desse texto. Ele me esmaga, tu vês? Me esmaga feito um caminhão a toda velocidade. Chega, chega de caminhões. O Senhor é meu pastor e nada me faltará. Vou ler a bíblia, fortalecer minha fé, redimir meus pecados. Preciso tomar algumas medidas antes de ir pro abate de novo. Antes de sair de lá renovada. Antes de renascer das cinzas, mais uma vez. Preciso dizer sim à mudança, por que somente ela poderá me libertar dessa mesmice nostálgica, desse embalo triste. Preciso... Preciso chorar e deixar que essa maré role pra fora do meu corpo, limpando minha alma com a lágrima pesada. Sinto-me mais leve, embora não menos apavorada. Tenho coragem, mas ainda assim posiciono um pé atrás. Lembro então que estarei anestesiada. E tudo não passará de uma lembrança que nunca terei. Como um corte feito na linha do tempo da minha vida. Como o acidente em si foi pra mim: Algo inexistente nos confins da minha memória. Mas chega, chega. Já estou beirando a loucura, o inconformismo e a vergonha. Só vejo luz, tu vês? A luz que me abraça e promete um dia melhor, uma recuperação fácil, um resultado agradável.

Chegou a hora de nascer de novo, pela segunda vez, em menos de um ano. Adeus tragédias desnecessárias. Abro meus braços para meu corpo que se transforma, para minha alma que se lapida. Abro meu coração para o futuro. E que seja o que tem de ser. Desejem-me sorte: Vou nascer de novo.


 

Nenhum comentário:

Postar um comentário