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sexta-feira, 27 de abril de 2012

Alameda do bateu as botas, 345

- Qual o seu nome, senhor?

Ele fechou os olhos, forçando-se a lembrar de como se chamava. Era algo que começava com P. Pedro, Paulo, Pietro, Pumba...

- Romeu.

O homem alto de macacão cinza o encarou com curiosidade, levantando a sobrancelha esquerda, como se o questionasse mentalmente.

- Você é aquele que caiu no poço da casa da filha?

Todas as pessoas viraram para o olhar. Naquele lugar, tudo era névoa, nada era sentido. Nada de calor, nada de frio, nada de medo. Sem sensações, sem clima, sem cheiros. Um nada enevoado e vazio, não fosse pela multidão que se arrastava lentamente pelos portões de ferro gasto, onde tinham dois homens a controlar a entrada. Romeu não fazia ideia do que estava fazendo ali, nem lembrava de nada. Mas sentia a garganta latejando. Quase como se alguém o segurasse pelo pescoço. Quase como um sopro na jugular.

Ele não sabia do que o homem estava falando. Ele não se lembrava de poço nenhum, nem de filha nenhuma nem de... Ei, espere. Ele lembrava de algo. Uma casa. Uma grande casa branca, com janelas vermelhas. Vitoriana, pátio bonito, um cachorro velho roncando na porta. Ele lembrava de uma criança o olhando horrorizada, os olhos esbugalhados da mãe a fita-lo. Ele lembrava de estar inerte observando tudo, até que simplesmente caiu num chão sem batida e a névoa o levou até aquele lugar. Uma espécie de estação de Trem, como aquelas de Londres. Só que muito confusa. Muito enevoada. Muito nada.

- Não. Eu sou o Romeu filho do seu Sebastião.

- O Sebastião do pastor alemão?

- Que pastor alemão?

- Aquele que engoliu as bolas dele depois que o matou. Acho que o senhor deve saber.

- Meu pai não morreu ainda! Não senhor! Ele tá vivinho, é dono de uma das maiores empresas dessa cidade! O senhor por acaso sabe com quem está falando?

O homem caiu na gargalhada. A estupidez e a ignorância de Romeu o divertia. O velho estava mais perdido do que cego em tiroteio. E a ele, isso parecia muito deselegante. Era um homem rico, cheio de terras e posses e dinheiro. E não era burro. Não mesmo.

- E o senhor, meu velho, sabe com quem está falando?

Olhou o homem de cima a baixo, notando o estado sujo das roupas, a aparência desleixada, a falta de higiene. Obviamente era um gari. Um simples lixeiro. Quem diabos ele pensava que era?

- Um insolente! É o que o senhor é! Agora, faça-me o favor de dizer onde estou e o que estou fazendo aqui. Tenho uma reunião às 6 amanhã e...

- Cale a boca, e me diga seu nome.

Romeu se surpreendeu. Nunca alguém tinha falado com ele de modo tão desrespeitoso. Apertou os olhos, juntou as sobrancelhas e tentou deixar transparecer toda a sua importância. Porém, seus esforços foram em vão: o gari continuava a encará-lo de forma muito séria. Cedendo, Romeu resolveu falar.

- Meu nome é Romeu de La pontes Miranda. E sim, eu sou um dos maiores milionários da atualidade. Sim, eu sou o dono da Manchester. Aquela marca de sabão em pó que você já está careca de usar.

Estava com o peito inflado, as bochechas flamejantes. Sempre sentia orgulho de si mesmo quando falava sobre sua carreira. Era um homem de bem, pensava. De bem e muito bem sucedido. E se deu por satisfeito quando o homem de macacão cinza pareceu perplexo, quase envergonhado. Olhava para a prancheta com uma certa ansiedade.

- Não pode ser... Não, não... Eu saberia...

- Devo admitir que é uma bomba e tanto saber do que eu faço e como cheguei até aqui...

- Cale a boca, eu estou tentando me concentrar.

E Romeu, mais uma vez, ficou sem palavras. O que diabos aquele cara estava pensando?

- O que você tanto procura afinal?!

Então, num sobressalto, o homem jogou a prancheta no chão e saiu andando até o outro homem, ao norte. Discutiu, elevou as mãos e a voz e, quando parecia finalmente ter conseguido algum resultado, voltou. Sorrindo e muito satisfeito consigo mesmo.

- É você!

- Sou eu o quê?

O homem sorria, uma espécie de sorriso zombeteiro. Chegou mais perto de Romeu e , sussurrando disse:

- Você morreu ontem, meu rapaz. Você foi enforcado. Lamento ser eu a ter que dizer isso, mas no fim sou sempre eu que tenho de dar a notícia mesmo.

E, naquele instante, Romeu morreu pela segunda vez. De ataque cardíaco.

Como poderia ter morrido enforcado se tinha tanto dinheiro ainda pra juntar? Como?

- E por que você me olha como se fosse tao importante assim?

O gari sorriu.

- Eu sou o guardião dos portões, aquele que manda toda a sujeira pro inferno. Meu amigo é aquele que manda toda aquela gente sonsa pra algum tipo de paraíso. Então, venha comigo senhor. Vou te mostrar o que há de bom na morte.

Rokmeu não entendeu.

- Por que eu vou para o inferno? Passei minha vida me dedicando ao emprego e ao amor!

- Claro que se dedicou ao emprego. Só viva pelo trabalho, comia o dinheiro dos seus funcionários e seduzia todas as secretárias disponíveis.

- Isso é amor. Amor ao trabalho, amor ao meu patrimônio e amor às minhas mulheres.

E então Romeu se deu conta: De amor o inferno estava cheio. Ou de boas intenções, o que, no fim, dava no mesmo.

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