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terça-feira, 3 de abril de 2012

Sobre estar faminta

Sinto fome, e isso é bom. Meu estômago vazio ronca, esperneia, grita, chora, dói, bate nas paredes do meu corpo, luta e não se cansa, só pra dizer que precisa de comida, que precisa de complemento. Sentir fome é sentir falta daquilo que me é muito, muito necessário mas eu não tenho tempo de perceber isso enquanto estou satisfeita. Sentir fome é o ápice do amor à vida, o ápice do platonismo, o ápice da paixão não retribuída. Sentir fome me faz sentir viva como nunca me sinto quando estou satisfeita. É uma dor que arde sem se ver, como diria Mário Quintana. Sentir fome quase dói tanto quanto sentir saudade. Por que a saudade não some quando a gente come o que causou saudade, mas a fome se cura quando a gente ingere qualquer substancia meramente gordurosa. Sinto-me tão selvagem, tão animal, tão humana! Meus instintos aguçados, meu olfato agride a dor do meu estômago com todos esses cheiros de comida cozida. Meu paladar saliva só de pensar no gosto do meu alvo, do meu alimento. Eu poderia comer qualquer coisa agora. Até um boi morto eu comeria. Não, certamente eu não comeria um boi morto. Mas alguma coisa feita com a carne do boi cozida e muito bem escondida entre molhos, legumes e outras técnicas culinárias. Algo que disfarçasse a minha cultura estúpida de engolir todo o sangue dos animais só pra me sentir mais saciada.

A questão é que o meu estômago é muito honesto, muito verdadeiro. Ele sabe muito bem a hora em que sente fome e a hora em que não aguenta mais até vomitar. Ele sabe expulsar o que não faz bem sem sentir nenhuma pena disso. Ele é tão simples, tão racional, que quando deixa o meu abdômen inchado por causa do meu exagero, é como se gritasse por libertação. Ele não sente saudade enquanto está satisfeito, ele não chora os litros derramados que não lhe eram devidos. Ele só se sente terrivelmente deprimido quando a fome bate de maneira avassaladora, como o que acontece todos os dias pela manhã. E pela madrugada também. Eu sustento uma verdadeira admiração pelo meu estômago, por que ele sim sabe como ser gente. Ele sim respeita os próprios limites. Não é como eu, a idiota maluca que fica se lamentando por um bolo alimentar já degustado, mastigado, engolido e vomitado. Não... Ele não é como eu que romantiza todas essas merdas bizarras que um dia serviram apenas pra alimentar a minha fome momentânea. Meu estomago faz questão de esfregar na minha cara toda a inteligência e o bom-senso que só ele tem. Ele faz questão de pular que nem uma criança na minha frente, como se me chamasse de burra toda hora. Por que eu, ahh, eu sou faminta o suficiente para querer engolir todo mundo que entra na minha vida, só pra poder sentir o gosto diferente. Eu sou a louca que vai mordendo os braços e pernas e gorduras de todo mundo só pra sentir o alimento sendo enrolado de um lado pro outro na minha língua. Como se ficar mastigando infinitamente as pessoas me servisse pra acabar com a solidão. Por isso que eu vivo mastigando chicletes, por isso que a minha bolsa vive cheia de tridentes. Por que eu preciso viver mastigando pra poder sentir a comida de fato dentro de mim. É muito chato quando a gente fica satisfeita com tudo dentro do estomago e nada na boca, sem gosto nenhum. É muito chato sentir falta daquele liquido viscoso escorrendo por todos os lados das minhas gengivas, banhando meus dentes e expulsando o vazio. É chato, chato, chato.

Deve ser por isso que existem pessoas obesas. Por que elas, assim como eu, não conseguem parar de comer e sentir todos os gostos do mundo, só pra disfarçar a falta que o gosto certo faz. Deve ser por isso que muitas mulheres viram anoréxicas: Por que disfarçar dor com comida se torna ainda mais doloroso do que comer de fato. Daí elas param com essa obsessão quando percebem que as noites vazias e os telefones silenciosos não serão preenchidos pelos carboidratos, mas sim pela falta deles. Por que não comer nos deixa livres pra escolher entre a dor e a pseudolibertação. E comer demais ou comer de menos tá super ligado à culpa. Que nem amar alguém. Por que tu sabe, tu sabe. Eu te amo, eu te amo muito e isso me mata. Me mata que nem comer milhões de calorias por dia. Te amar entope as minhas veias de gorduras e me deixa inerte que nem uma obesa. Eu vivo te engolindo pelo dia inteiro, fico regurgitando como uma vaca tudo o que vem de ti. E toda aquela tua conversa no final da noite sobre como a saudade mata me mata de salivar por ti. Com aquela tua voz grogue de quem tá com sono. Tão lindo e tão gorduroso! Te amar é estar sempre faminta sem suprimento algum pra me alimentar. E eu tenho vontade de te devorar inteiro, sem nem mastigar, só pra encher o meu estômago com cada centímetro do teu corpo. Mas não, eu não te engulo. Eu te degusto. Aos poucos, como alguém refinada que eu sempre quis ser. Uma mordidinha aqui, outra ali... Nada que me faça parecer gulosa demais. Preciso me controlar pra não acabar contigo logo na primeira dentada, preciso ser uma dama educada, uma menina delicada. Comer devagar, sentir o sabor e jamais parecer uma selvagem.

Não, eu não vou conseguir fazer isso. É difícil demais dizer não aos nossos instintos, difícil demais negar algo pra mim mesma. Acabei de decidir que eu vou te engolir vivo, que nem uma jiboia. Vou ficar por sete dias te digerindo no meu estomago inchado. Talvez isso me sacie por algum tempo. É. Sem ver as tuas tripas, sem estraçalhar esse teu rosto lindo. Eu só vou te engolir. Só pra te manter ali, dentro de mim, sabe? Sei lá, pode parecer meio psicótico, mas eu gostei da ideia. Vou te comer vivo. É, é, vou te comer vivo. Meu almoço, meu amor, meu tudo!

- Alfredo – disse eu num sobressalto -, prepare a louça de jantar porque hoje é dia de banquete!

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