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quinta-feira, 22 de março de 2012

Artes Cênicas e outras tragédias

Olhava-se no espelho com uma angústia avassaladora. O rímel havia escorrido e agora formava uma linha disforme abaixo dos olhos azuis. Não aguentava mais essas maquiagens vagabundas que era obrigada a usar. Não aguentava mais a lâmpada estragada do banheiro público que insistia em fazê-la parecer amarelada e mais velha. Com um pouco de frustração, passou a unha do indicador exatamente no risco do rímel, o que apenas agravou o borrão. Cuspiu no mesmo dedo indicador, olhando em volta para se certificar de que ninguém a estava observando e passou no rosto novamente. Dessa vez tinha saído. Pronto! Estava livre do borrão horrível que tinha surgido bem no meio da apresentação daquela peça de Shakespeare. Como era o nome mesmo? "Sonhos de uma tarde de verão" ou algo assim. Não, não, era noite. Sonhos de uma noite de verão.

Maldita hora em que passou no vestibular para Teatro. Maldita, maldita hora. Por que os pais tinham de ser tão liberais? Por que ela tinha que ser tão idiota, tão boba? Já tinham se passado 3 anos desde a formatura e nada de Hollywood, nada de beijos demorados e anti-profissionais com Ian Somerhalder, nada de capas da People e nada de cup cakes ao entardecer em algum café famoso de Nova York. Ela não era uma Sarah Jessika Parker, perdida em compras, sexo e amigas siliconadas em meio à cidade grande. Ela não era uma Maryl Streep graciosa e elegante, flutuando no tapete do Oscar. Ela era apenas a garota triste, com a maquiagem borrada interpretando uma coadjuvante num teatro pobre de São Paulo. Sem holofotes, sem graciosidade, sem programa da Oprah. Era a looser do sonho americano, a personagem gordinha de Glee. Os olhos ardiam de sono, de raiva, de medo. O teatro disponibilizava 170 lugares, e apenas 25 estavam ocupados. Uma amiga da faculdade que tinha quebrado o braço e a vó paterna eram as únicas pessoas presentes que ela conhecia. Meu Deus, que desastre! O cenário feito de papelão, o vestiário doado por um brechó interditado por ilegalidades. Era tudo o que ela tinha.

A porta do banheiro se abriu delicadamente, causando nela uma tremedeira. Os ombros caídos refletiam no espelho quebrado, e ela pôde ver discretamente que quem acabara de entrar era Danielle de Mourier, a garota de pele morena por quem ela sustentava uma paixão intensa e proibida. Deixou os punhos trincados, tentando controlar o desejo de beijá-la ali mesmo. Não podia se dar ao luxo de assumir sua sexualidade duvidosa, quando tudo o que mais precisava era ser uma atriz séria, forte e muito, muito hetero.

- Acho melhor você voltar logo pro ensaio antes que o Robson venha te procurar.

Dizia Danielle, logo se seguindo um de seus discursos fantasiosos sobre a fama estar próxima ou coisas assim.

Mas ela não prestava atenção. Estava perdida nos lábios rosados da negra com descendência francesa. Que vontade de fugir para Amsterdã com aquela mulher. Que vontade de ser homem por pelo menos um minuto e se perder nas curvas dela. Mas ela não era um homem e certamente não iria pra Amsterdã. Nada de maconha legalizada, nada de paisagens montanhosas, nada de troca de sexo. Ela tinha que se contentar em ser a garota triste com cabelos dourados apaixonada pela sua colega de teatro. Mas então algo aconteceu, tão rápido como um borrão. Há um minuto atrás ela tinha controle sobre si mesma, e agora estava jogando Danielle contra a pia, apalpando seus seios. Mas a surpresa não foi da menina negra ao se ver contra o espelho do velho banheiro. A surpresa era a que estava estampada nos ossos da menina loura. A surpresa pelo fato de que estava sendo muito bem retribuída, causando-lhe uma sensação de tempo perdido. Meu Deus, o que ela estava fazendo? Ou, pior, o que Danielle estava fazendo? Elas não podiam simplesmente fazer isso. Por que era errado ser lésbica. Era errado ter duas bocas femininas curvando-se uma na outra no meio de um banheiro. Era errado por que eram mulheres e de raças diferentes. Era errado por que Danielle não entendia muito bem o nosso idioma e era patriota demais de alguma cidadezinha estúpida da França. Era europeia demais, africana demais, proibida demais. E talvez fosse isso que encantasse: O fato de se estar fazendo algo errado.

Pensando nisso, com um enorme pesar, a menina loura interrompeu o beijo que já não era só beijo há muito tempo, para fazer o que quer que achasse certo. Tipo chegar em casa e beber nua e solitária na velha cama de ferro que tinha herdado do avô. Certo. Ela tinha que sair para a vida, encher a cara de álcool e arrumar um namorado bem másculo pra não ter que lidar com a lembrança de Danielle. Ela tinha que ter um bom senso. Um bom senso comum. Comum como todo mundo diz que tem que ser. Ela tinha que ser alguém que o mundo queria que ela fosse. Por que ser alguém que ela queria ser, era muito difícil, muito impossível. O jeito é se entregar mesmo, é fazer apenas o previsível. O jeito é abaixar a cabeça e dizer sim, sim, sim, milhões de sins, até que o arrependimento seja maior do que a submissão. Pena que a menina loura seja triste, lésbica, racista e submissa. Algo me diz que ela teria dado em alguma coisa. Tipo uma ótima atriz ou ativista feminina. Algo me diz que aquele beijo poderia ter se estendido e nós estivéssemos juntas. Mas ela não pode saber que eu secretamente a tenho em mim. Não. Ela era submissa demais para mim. Eu precisava de segurança, de alguém que enfrentasse o mundo inteiro só pra estar comigo. Ser homossexual no século XXI é tão comum que me ofende pensar que ela desistiu. Mas chega de pensar nela. Chega. Nem lembro mais do nome dela, nem de nada. Eu sou apenas a narradora nostálgica que observa de camarim o desastre amoroso da vida de duas meninas apaixonadas. Mas chega. Estou com sono demais para continuar sentindo falta. Sono demais. Chega.

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