Translate

sexta-feira, 23 de março de 2012

Clair de Lune às avessas

O olhar solitário estava à espreita de algo que a fizesse viver de novo. Quase como se a brisa gélida da Argentina a aquecesse, quase como se estivesse sendo revigorada. Sentiu os cabelos se desgrenhando pela face, úmidos com as partículas do ar. As mãos gélidas digitavam rapidamente sobre coisas que não entendia. Tinha que ser rápida para não perder o fio da meada. Tinha que ser ágil como um leopardo, antes que a inspiração se diluísse com o frio. Respirou fundo, olhou ao redor e voltou para a bolha enevoada que a escondia do mundo. Perdeu-se em um baile vitoriano. Lindos vestidos, espartilhos e intelectuais arrogantes. Podia sentir a magia da Inglaterra pairando por sobre seus ombros, a vivacidade de Paris iluminando seus olhos secos. Desistiu de escrever, não conseguia mais. A imaginação estava turva, a visão embaçada. O choro preso na garganta pra que não saísse em soluços histéricos e febris.

Ao lado da janela de persiana azul, havia o piano jogado às traças. Há quanto tempo não tocava mesmo? Um ano? Quem sabe dois? Inspirada, correu ao seu refúgio musical. Estalou os dedos e começou a embalar uma melodia triste. Estava quase se lembrando de como se toca Bach, mas acabou saindo um simples Debussy. Clair de Lune, o clichê dos clichês. Não se lembrava da história da musica nem do homem responsável pela sua existência, mas sabia muito bem como tinha que tocar. Os dedos ágeis em uníssono embalavam sua emoção conturbada através das teclas empoeiradas. E ela começou a lembrar de tudo. De como tinha sido difícil se despedir de sua mãe. De como seu pai estava ficando cada vez mais louco e depressivo. De como a vida jovial havia se transformado em algo contraditório e mísero. Lembrou-se do que estava escrito na lápide da boa senhora que havia acolhido a si. A face pálida, o crânio nu. O câncer pulmonar que invadira seu bom coração e a levara pra longe da filha, do marido, do mundo. Estava a sete palmos do chão, como deveria ser. Com todos os sonhos, as presilhas de cabelo coloridas, os bolinhos de creme dos domingos e os jornais velhos para aquecer a fogueira. Tinha tudo com ela. Toda a infância da filha agora órfã, toda a felicidade do marido, agora infeliz. Não é cômica a forma como a morte entra sem bater e leva tudo que não poderia levar?

O barulho de um galho de pinho batendo violentamente contra a vidraça da janela a tirou do torpor e de Debussy. Estava novamente sozinha na velha mansão, com uma tempestade se aproximando e a repetitiva mania de sentir-se oca e inútil. Lembrou-se com um sobressalto, que havia esquecido do espaguete no fogo e, com um desespero exagerado, correu. Ora esperando que a casa incendiasse, ora querendo que algum criado viesse ajuda-la. Que surpresa ela não levou ao deparar-se com Martin. O garoto mexicano que agora estava cuidando da casa enquanto a mãe estava enferma. Que dificuldade para respirar perto daquele homem. Que dificuldade para lembrar-se de sua dor. Estava tão apaixonada por ele. Tão encantada. Mas que diabos ela tinha de ter visto logo no criado? Ela era Beatriz de La Contë, com milhares de hectares de terras disponibilizadas apenas a seu bel prazer. E ele era o latino ilegal que fazia o seu oxigênio ser interditado pelo coração só de vê-lo. Quase como o que acontecia com Cathy e Heatchcliff, segundo Emily Bronte. Ela não gostava de pensar nessas coisas, sentia-se estúpida, ridícula e infantil. Mas o que o amor é, se não a ferramenta mais eficaz para tornamo-nos dementes? Beatriz odiava estar no papel de donzela lúgubre e apaixonada. Odiava ser uma espécie de personagem de Jane Austen. Mas o que ela poderia fazer? O amava do fundo do coração e o odiava por não poder amá-lo. O que a mãe teria dito sobre isso? "Menina insolente". "Menina boba". Ou algo que a fizesse sentir como uma criança de cinco anos encantada com o Barney. Ela estava presa num drama épico do século XVIII, enquanto seu corpo desolado vagava pelas tragédias tecnológicas do século XXI.

O peito nu do desgraçado estava a centímetros do seu próprio peito palpitante.

- Eu assustei a senhora?

Senhora, senhora. Se ela estivesse em um conto vitoriano, ele a chamaria de senhorita. Ela teria fechado os olhos e suas bochechas estariam coradas. Ele teria se curvado e pedido desculpas. Mas ele não era um criado. Era apenas o filho da caseira. Ele não era profundo e clássico como Heatchcliff. E ele definitivamente não era um conde do sul da Inglaterra como Jane Austen teria quisto que ele fosse.

- Não, não. Tudo bem. Sua mãe está melhor?

- Um pouco. Acho que até a semana que vem ela já vai estar de volta.

Sentia-se estranha, quando o homem a devorava com os olhos negros de rapina. A desnudava, a destruía frente a ele. Um olhar tão íntimo e doentio que ela sentiu seus joelhos tremerem. Era enfim a donzela pálida com a dor lúgubre apaixonada pelo serviçal semi-nu. Era enfim uma espécie de Catherine Earshaw mais moderna, curvilínea, ruiva e independente do que a original. Mas ainda assim uma heroína tuberculosa, rodeada por brumas mágicas. Ou podia se contentar com a realidade de ser a moça sardenta, órfã de uma mãe ausente, apaixonada pelo cara grotesco com uns bíceps enormes que estava bem na sua frente.

Ela queria saber o que será que iria acontecer se ela passasse de Catherine para Capitu? Aquela dos olhos de cigana oblíqua e dissimulada. E assim foi. Ela era a Capitu. A eterna personagem de caráter duvidoso. Numa versão mais ruiva, triste e curvilínea. Ou se tivesse um pouco de Lucíola? Um pouco de Lolita? Tinha tomado sua decisão. Iria deixar de lado, apenas por hoje, todo o seu intelecto clássico, toda a sua melodia erudita e todo o seu comportamento puritano. Iria, só por hoje, tentar ser uma personagem mais calorosa. Mais apaixonada. Sorriu para o mexicano que, como se lesse seus pensamentos, sustentava uma expressão de expectativa, e disse:

- Martin, venha comigo.

- Para onde?

Ele estava com as bochechas vermelhas, as narinas levemente abertas. Beatriz sentiu um calor subir por seus pés.

- Para o meu quarto.


 

Nenhum comentário:

Postar um comentário