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domingo, 18 de março de 2012

A carranca

Os lábios dela estavam puxados para baixo em uma carranca triste. Era o que acontecia quando tudo parecia estar certo, mas não completamente. Era o que acontecia quando ela montava um quebra-cabeça de 500 pecas, e de repente percebia que havia perdido uma e teria de lidar com o buraco deixado por ela, bem no meio da paisagem formada. Ela ficava carrancuda, cínica e triste. Perdida em sorrisos pela metade que talvez dessem a impressão de que estava feliz. Mas estava mesmo feliz - ou algo bem perto disso - , ate ouvir sobre o assunto que tinha declarado como encerrado para todas as portas cruéis do seu pensamento. E então bastou uma menção exterior ao que antes se dava como esquecido, para que seus malditos lábios se curvassem. Milhares de agulhas finas espetando a pele recém curada, como uma acupuntura que desse errado. Milhares de partículas estranhas entrando em contato com as células recém formadas, como uma forma de ardência que parecia latejar a cada passo, a cada suspiro. E isso fazia seus lábios se curvarem. "Lembre-se de se manter alegre, lembre-se de se manter alegre. Não seja covarde, não seja covarde". Dentro do cérebro, os pensamentos e repreensões cantavam alto. Mas era inútil. Ela não era covarde. Mas, por algum motivo, estava bastante inclinada a ser. Afinal, o que importava? Ela tinha uma vida muito ocupada com todos os amigos da faculdade e da vida em geral para pensar em assuntos que nunca deveriam ser expostos novamente. Ela era feliz e sorridente demais para ficar com uma carranca triste no rosto levemente maquiado. Ela era exatamente como os caras com sorrisos perfeitos da propaganda de creme dental. Ela era feliz, bem sucedida, altamente sociável e muito, muito sorridente. Então por que a recaída? Por que a covardia? Sentia-se uma idiota, uma sentimentalista imatura e totalmente burguesa. Por que somente os burgueses se dão ao luxo de ficar tristes por qualquer assunto meramente superficial. Não que fosse superficial, mas ela gostava de acreditar que fosse. E assim foi. Ela tinha passado de uma garota totalmente sociável, sorridente e esquerdista, para uma burguesa antissocial e carrancuda. Se ao menos tivesse metade dos atrativos que uma garota triste devesse ter poderia amenizar a expressão seria, mas não tinha. E suspirou de novo, tentando ignorar as trezentas agulhas que pinicavam em todos os poros do corpo. E, imediatamente, ela odiava todo mundo. Ela odiava todas as garotas sorridentes com corpos esguios e voz esganiçada. Ela odiava o drama cotidiano de casais exagerados e meramente apaixonados. Ela odiava a Oi, odiava a Livraria Cultura e odiava todos os sapatos de salto alto do mundo. Ela odiava a economia, o sorriso pálido do Obama, o jornal velho deixado em cima da mesa do restaurante e os pré adolescentes com ejaculação precoce. Estava triste, carrancuda e irritada. E, para a sorte do mundo inteiro, ela odiava tudo que existia ou pudesse vir a existir. E odiava a si mesma por ser uma pessoa tão odiosa. Como ela conseguia ser tão falsa? Ouvia sua própria voz com escárnio, constatando uma crescente falta de evolução. Piadas sem graça, comentários sarcásticos carregados com uma mensagem oculta que ninguém entendia, assuntos batidos. De repente, ela estava presa num flashback de si mesma no futuro, rodeada por gatos, livros, rugas, celulites e opiniões amarguradas. Sempre odiando, sempre lutando contra o ódio, contra si mesma. Sempre vestindo a pele daquela personagem revolucionaria de algum livro que ouviu falar, para não ter que lidar com a sua própria historia. Sempre decorando textos, citações e teorias alheias para não ter que engolir suas próprias teorias impossíveis. Era um plano muito seguro de sobrevivência quando a vida seguia o rumo natural. Exceto em momentos como esse, em que ela era obrigada a encarar sete rostos conhecidos e lidar com toda a alegria, o amor e a amizade do mundo. Quando ela era obrigada a se despir de todos os exageros, todos os sarcasmos e todo o status como um negocio de troca. Ela se despia e eles também. Todo mundo tocando na pele exposta de todo mundo. Quase como um sexo grupal, só que mais intimo e menos promiscuo. Era em momentos como esse que ela tinha de lidar com a sua própria carne exposta, com a própria ferida aberta a micróbios, que não havia escapatória. Vestia, suavemente, suas mascaras. Apenas pra esconder o necessário. Um puxão daqui, um puxão dali. Nada que não pudesse se manter escondido. Afinal, eles eram felizes e sociáveis como em uma propaganda de cerveja, certo? E em propagandas de cerveja ninguém fica carrancudo, triste e amargurado. Então ela suspirou fundo, tomou um gole da coca cola capitalista, quente e não saudável e resolveu que sorriria. Mesmo que tivesse que ignorar toda a chuva de agulhas, todas as meninas com voz esganiçada e todos os casais exagerados. Quer dizer, tanta gente continua viva depois de perder uma peca de quebra-cabeças... Então ela poderia continuar também. Certo?

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