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quarta-feira, 28 de março de 2012

Sophie

Acordou-se no meio da madrugada com o coração batendo violentamente contra suas costelas: estava caindo em um precipício quando o som do bater de pés na cozinha a salvou. Respirou fundo, calçou os chinelos e foi até o banheiro. No caminho, uma cena constrangedora, mas comum: dois pares de pés entrelaçados rolando pelo chão da cozinha. Ela não viu exatamente o que estavam fazendo, mas sabia muito bem. Eram seus pais fazendo a mesma coisa que provavelmente fizeram a doze anos, dando origem à sua existência. Eram os pais, fazendo sexo na cozinha, entre o breu da madrugada e os gemidos clamantes por mais. Mas Sophie já estava acostumada com isso, desde quando tinha cinco anos, quando viu, pela primeira vez, a sua mãe realizando movimentos estranhos sob o corpo inerte de seu pai. Foi aos cinco anos de idade, que Sophie desconfiou, pela primeira vez, que havia muito mais em um casamento do que tardes entediantes com primos e chás. Mas ela sabia que não deveria se intrometer, porque parecia íntimo demais, adulto demais pra que eles soubessem que ela sabia.

Depois desse dia, fosse por acaso do destino ou por puro azar, a frequência aumentou. Quase como se o apetite sexual de seus pais fosse inesgotável, infinito como as estrelas. Todas as semanas eles faziam sexo assim que ela dormia. Mas os ruídos da cama, os ruídos da voz, os ruídos do desrespeito, a despertava. E, um belo dia aos oito anos, ela percebeu que não só eles faziam, como também assistiam a pessoas fazendo a mesma coisa na televisão. Os mesmos gemidos repetitivos e angustiantes, as mesmas palavras esdrúxulas e raivosas. "Mete mais, mete mais, mete mais!" - dizia a inesquecível moça loura com os peitos maiores que a própria cabeça, dentro da televisão. Em cima dela, tinha um homem desesperadamente raivoso, fincando algo na mulher, que Sophie não reconhecia naquela época. Como se estivesse a machucando com um punhal ou coisa assim. E os pais faziam a mesmíssima coisa. A mesma sequencia de gritos raivosos e lamúrias angustiantes, seguidos por beijos e algumas palavras feias que ela jamais teria coragem de dizer.

Saber de tudo isso no começo a deixava assustada e confusa. Ela não tinha coragem de perguntar pra ninguém o que era, não tinha coragem de admitir pra si mesma que sabia. Parecia feio demais, já que o pai ficava tão brabo a ponto de bater repetidas vezes na bunda da mulher. Parecia adulto demais, a ponto de eles deixarem todo o ato apenas para quando Sophie dormia. Era como se, de noite, os dois se transformassem em animais e vivessem como cães selvagens, com todos os barulhos e movimentos bruscos. Tudo era tão grotesco, tão carnal que ela se sentia ofendida apenas de ouvir. Às vezes, se perguntava se sua mãe era como as cadelas no cio que, ao menstruarem, chamam a atenção dos machos. E se for assim quando ela própria menstruar? E se ela chamar a atenção de todos os homens na rua? As princesas também menstruam? As princesas também faziam aquilo? Mas toda a perplexidade e a confusão e a vergonha sumiram depois que ela aprendeu exatamente o que era isso na escola.

Então, hoje não fazia a mínima diferença o fato de que eles estavam nus no chão da cozinha, rolando um sobre o outro. Ela odiava ouvir a voz da mãe de uma maneira tão frágil, a voz do pai de uma maneira tão grosseira. Sentia nojo deles e de si mesma. Sentia nojo por ter de presenciar aquilo, nojo pela falta de respeito. Por que diabos as pessoas faziam sexo afinal? Por que diabos as pessoas não poderiam ser normais como ela e sobreviver sem toda aquela historia de pênis, vagina e bebês? Por quê? Por que na aula de sexologia da quinta série logo ela tinha que saber de tudo que acontecia, quando as suas amigas nem faziam ideia? Ela não entendia nada do mundo adulto. Quer dizer, na verdade ela entendia. Entendia muito bem, mas tentava poupar sua inocência tentando esquecer-se de tudo que tinha visto. Principalmente aquele dia em que viu o próprio pai apalpando os seios da professora de geografia depois da reunião enquanto sua mãe estava doente demais em casa para comparecer. Mas ela nunca contaria. E ela sabia que provavelmente ele também fazia aquelas coisas com a sua professora.

Ela não entendia por que diabos as pessoas em todos os lugares tinham tanta vontade de fazer isso. Em todos os filmes, em todos os assuntos, em todos os sites. Em todo o mundo, as pessoas tinham vontade de... De... Bem, de reproduzirem-se. Ela via isso em todas as revistas e no modo como as pessoas se vestiam. Via isso nas músicas, nos livros. Como se a vida só fizesse sentido em quanto girasse em torno do sexo. Como se as pessoas vivessem apenas na apelação disso. Como se todos os decotes e maquiagens e playboys e homens suados sem camiseta fossem as únicas coisas necessárias para uma vida feliz. Mas seus pais faziam, sua professora fazia. E muito provavelmente, algumas de suas amigas também faziam agora. Parecia que o mundo, assim como no seu sonho, era um grande precipício para pessoas que caíam seguidamente em um vão infinito de corpos nus, gemidos e grosseria.

Era isso que chamavam de amor? Era isso que o Bruno queria fazer com ela quando mandou um bilhetinho na terceira serie dizendo que a amava pra todo o sempre? Era isso que a prima dela fazia com aquele cara estranho de uma banda de metal? Era isso que o dia dos namorados representava? Sério? Só isso? Era isso que acontecia depois do final feliz da Cinderela, quando ela finalmente ia morar no castelo do príncipe encantado? Era isso que acontecia depois do casamento no final das novelas? Todos aqueles corações e bolhas plastificadas com chocolate apenas para representar o sexo? E por que, meu Deus, por que ela, dentre de todas as meninas de cinco anos que conhecia, tinha que ser a única a perceber tudo isso antes da hora? Não sabia. Mas o trauma lhe causou um torpor, uma indiferença aguda ao sexo. Um asco tão grande, que mal cabia em seu pequenino conhecimento sobre a vida. Agora, quando via os pais rolando em qualquer chão da casa sem o mínimo pudor, fazia questão de ir ouvir musica ou ler um livro. Agora, quando via um casal na rua se beijando, ela sabia exatamente o que eles fariam a seguir, quando chegassem em casa. Toda a estupidez de dois corpos batendo entre si. Toda a dor expressa pela boca da mulher, pela boca do homem. Todos os casais disfarçando a selvageria com palavras de amor.

Sophie não sabia muito bem o que era amor, mas queria manter distancia. Sem se submeter a certos atos duvidosos, sem ser como seus pais que rolam por aí grudados como cães no cio. Não, Sophie seria diferente. Tudo, tudo menos o tal do amor. Era tudo que ela desejava naquela noite. Jamais ser como sua mãe, jamais ser como os adultos. Ela não queria ser, nem de longe, como os adultos estranhos que ficam nus e começam a entrar um no corpo do outro, como intrusos. Ela não ia comer a maçã que a Eva comeu, ela ia ser como o Peter Pan. Criança pra sempre. Como se, com isso, pudesse esquecer de que, aos doze anos, já era mais adulta que muito marmanjo por aí. Como se, com isso, pudesse esquecer da infância traumatizada pelo ato irresponsável dos pais e tentar estender a inocência corrompida por mais algum tempo. Como se ela estivesse imune ao grito que o mundo dá por toque, por prazer, por carne. Não, definitivamente Sophie seria diferente.

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